OS EXERCÍCIOS NO KARATÉ

(Subsídios para uma Fundamentação)

 

 

 

Abel A. A. Figueiredo

 

1988
1994

 

 

PREFÁCIO

Este documento foi elaborado fundamentalmente em Abril de 1988 ao nível da disciplina de Metodologia Geral do Treino incluída no 4º ano da Licenciatura em Educação Física, Ramo de Desporto / Desportos de Combate - Karaté.

Mantendo-se o seu interesse, principalmente no que se refere à aproximação entre os conceitos gerais da Metodologia Geral do Treino e os dos BUDO (desportos de combate tradicionais do Japão), fizemos apenas algumas modificações de pormenor, nomeadamente correcções cronológicas e apresentamo-lo como documento de apoio à acção de formação sobre Exercícios no Karaté realizada em 2 e 3 de Julho de 1994 em Lamego.

O grande projecto desta primeira acção de formação, tal como apresentado previamente pelo Gabinete de Apoio à Formação da Federação Nacional de Karaté - Portugal, será o de comparar complementarmente as abordagens tradicionais à modalidade (maior domínio analógico) com alguns conhecimentos da Teoria e Metodologia Geral do Treino (maior domínio sistemático). Tentar-se-á ultrapassar o reducionismo do empirismo extremista e o da sistematização inadequada, rumo à construção de uma Teoria e Metodologia Específica do Ensino e Treino de Karaté.

Nesta acção apresentar-se-á uma caracterização do Karaté numa abordagem que não se reduz às qualidades físicas predominantes. No entanto, abordar-se-ão as principais qualidades físicas e formas de treino, assim como o treino técnico e táctico na modalidade.

Junho de 1994


 

A FORMA É FINITA, O CONTEÚDO, INFINITO.

INTRODUÇÃO

É num movimento face às suas limitações como sistema tratante de informação, que o Homem tem caracterizado a "realidade" em unidades com significado, o que permite o seu melhor controlo e uma melhor clarificação das suas relações, quer intrínsecas, quer extrínsecas. Assim têm-se criado diversos sistemas lógicos de abordagem do Karaté-do.

Em trabalhos anteriores, temos encarado o Karaté-do[1] como uma das actividades da Motricidade Humana, no âmbito dos Desportos de Combate. A sua prática e ensino, quando correctamente orientados, objectivam o desenvolvimento humanizante biopsicossocial, utilizando, como instrumentos básicos de ensino e treino, exercícios fundamentados em situações de combate.

Pretendemos começar a especificar melhor o nosso campo de intervenção, tornando-o cada vez mais pragmático, de forma a operacionalizar cada vez melhor a fundamentação teórica que temos vindo a encontrar em investigações anteriores.

Não pretendemos, de forma alguma, chegar a uma "listagem" de exercícios para a modalidade. Situando-nos noutro paradigma fundamentador, vamos procurar estudar os seus pressupostos básicos, o que quer dizer que se o ponto central deste trabalho tenta ser o exercício no Karaté-do, tal não será desligado de questões a ele inerentes.

Por outro lado, tentaremos evidenciar a compatibilidade entre os conhecimentos tradicionais e os conhecimentos da teoria geral do treino desportivo na fundamentação dos exercícios de Karaté-do. Procuraremos uma distância que evite tomadas de posição polémicas e pré-concebidas em relação às concepções mais ou menos "marcialistas", ou mais ou menos "desportivistas", preocupando-nos sim por incidir em questões que consideramos num outro nível daquelas e em perfeita coerência com o já referido Significado Actual do Karaté (1987), principalmente referenciado perante o Homem actual.

Será, por isso, o tema central deste trabalho o seguinte: os conhecimentos científicos da Teoria Geral do Treino, aplicados no Karaté-do, não são incompatíveis com a ordem empírica e analógica dos conhecimentos da mesma modalidade, pelo que será possível chegar a uma fundamentação para os seus exercícios que englobe ambas as fontes de conhecimento, de uma forma lógica e interligada, o que permitirá, como já se referiu, uma válida expressão em trabalho específico de ensino e treino de Karaté.

A metodologia que aqui utilizaremos será a que nos é mais pessoal; tendo um ponto central, alargaremos e aprofundaremos sucessivamente níveis que irão sendo identificados e investigados, em trajectos espirais progressivos, sempre referenciados àquele ponto central escolhido, partindo do princípio que, na exposição, não nos dirigimos exclusivamente a especialistas do treino da modalidade, pelo que nos preocuparemos em explicitar de forma sintética, os termos técnicos utilizados. Por outro lado, visamos também um público praticante da modalidade, mas sem acesso a este tipo de informações. Procuraremos sempre, agarrar nestes dois pólos possíveis, e "conduzi-los" por este mundo algo desconhecido que é o da Metodologia do Treino do Karaté-do.

Iniciaremos pela actividade que consideramos de suporte a este desporto, a prova competitiva de combate (Kumité), caracterizando-o de forma sintética e o mais clara possível. A seguir, mergulharemos mais no treino, considerando aspectos "tradicionais" na sua abordagem, para logo referirmos um referencial de fundamentação do mesmo. Será tempo de tratar então do exercício físico, colocando-o face ao combate, evidenciando aspectos importantes para o treinador, chegando mesmo a uma sua classificação algo recente, dada pela teoria geral do treino. Nova pesquisa na "tradição" virá a seguir, para passarmos pelos factores de treino, com vista a chegarmos aos parâmetros de esforço. Finalizaremos com a apresentação de um quadro conclusivo que sirva de base de fundamentação ao nosso projecto de intervenção no ensino e treino de Karaté.

 


Aqueles que estão enamorados pela prática sem ciência, são como aquele navegador que segue num navio sem leme ou bússola, e que nunca tem a certeza em que sítio vai

LEONARDO DA VINCI [2]

O KUMITÉ

Falar em "situações de combate" é uma forma lata de abordar o combate. Convém no entanto especifica-las o mais possível, para começar o seu entendimento particular. No entanto esse quadro de referência pontual é visto como dinâmico e não como fixo, pelo que se procura essencialmente compreender e explicar as funções dos modelos inerentes e não definir exclusivamente as formas de comportamento; a passagem por esta fase é, apenas como um verdadeiro estudo de caso que serve de trampolim à falsificabilidade dos modelos hipoteticamente lançados.

A expressão actual do combate de Karaté-do (no sentido de jogo de oposição um para um), pode ser considerada a prova competitiva institucionalizada que, no sentido desportivo restrito, permitirá comparar as prestações atléticas dos praticantes de uma forma estandardizada e regulamentada. Tal prova é denominada de Kumité (Kumi: encontro; te: mão), e existem várias expressões possíveis: por categorias de pesos, por escalões etários, por sexos, individuais ou por equipas. A outra prova competitiva habitual no Karaté é a de Kata, prova esta que não será abordada especificamente neste trabalho.

Interessa ainda referir que tomaremos como ponto de referência, quando indispensável, as regras da FMK (Federação Mundial de Karaté) directamente formada a partir da WUKO (World Union of Karatedo Organizations), reconhecida pelo Comité Olímpico Internacional desde 1985 (Jon Evans, Black Belt, Fev. 1988, p.58).

 

Caracterização

A prova de Kumité é um tipo de encontro dual caracterizado por uma oposição directa e com contacto físico controlado. Nela ocorrem movimentos acíclicos de luta inerme: deslocamentos, rotações, saltos e varrimentos como acções técnico-tácticas preparatórias de outras: socos e pontapés directos, cruzados, ou circulares, blocagens, derivações, esquivas, etc. Decorre numa área de 64 metros quadrados (8x8), tendo uma duração limite de 2, 3 ou mesmo 5 minutos - normalmente só as finais são de 5 minutos e as eliminatórias 2 ou 3 (dependendo da organização). Sem intervalos, existem interrupções possíveis determinadas por um árbitro principal, sempre que haja acções explícitas de serem pontuadas.

Actualmente, um ippon ("ponto") equivale a dois wasari e o combate pode terminar antes do fim do tempo limite com a pontuação correspondente a 3 ippon, com excepção da prova de shobu ippon onde a marcação de um ippon implica a vitória directa do combate[3]. Marcar pontos através da execução de acções motoras correspondentes a wasari ou ippon é o que podemos considerar como a forma positiva de marcar pontos e assim ganhar combates. À forma negativa referimo-nos à vitória por falta de comparência ou renúncia do adversário (Kiken), por desqualificações (Shikkaku), ou por pontos correspondentes a outras penalizações (Keikoku, Hansoku Chui e Hansoku).

Sendo a regra base do Kumité, a do controlo rigoroso do "contacto" em cada acção de ataque (princípio do Sun-dome: os ataques param a alguns centímetros do alvo, antes do impacto - HABERSETZER, 1986, 2º vol., p.168), actualmente, o código de pontuação da FMK refere que uma acção motora é pontuada como ippon se obedecer aos seguintes critérios: "boa forma, atitude correcta, aplicação vigorosa, zanchin[4], timing adequado e distância correcta".

Quanto à intensidade do esforço, não é constante, alternando com níveis que podem ir de pequena intensidade (acções preparatórias: pequenos saltitares, momentos de observação, etc.), até níveis máximos de velocidade de execução (acções finalizadoras de pontuação ou de defesa).

 

Suas Qualidades Físicas

Em relação às qualidades físicas predominantes, começaremos por referir que foi observado que "[...] do tempo útil que dura o combate, o Karateca em média não está em acção (execução técnico-táctica objectiva, ofensiva ou defensiva, observável), mais de 15 segundos [...]", sendo que "80% das acções em competição não serão superiores a 50 centésimas de segundo. Os restantes 20% variam entre este valor e o 1,5 segundos" (Jorge Castelo, 1987, p.32).

Deste modo é plausível que se caracterize esta prova, em relação à resistência, como predominantemente do tipo anaeróbio aláctico.

A velocidade é uma das qualidades que transparece nas acções finalizadoras, quer frente à necessidade de surpreender o adversário e não lhe dar tempo de resposta à acção ofensiva, quer frente à necessidade de responder rapidamente às acções do oponente, quer mesmo ainda porque a sua variação positiva é factor intrínseco à transmissão eficaz da força de impacto () () () (). O impacto não é explicitamente procurado na competição, mas, como sua consequência biomecânica inerente, dependendo de quantidades de movimento () elevadas, torna-se a velocidade, um critério explícito de pontuação e qualidade física mecanicamente importante. Além disso, interessa tacticamente chegar ao adversário dificultando as suas reacções de defesa, o que elogia ainda mais esta qualidade.

A forma predominante da manifestação da força nesta prova, é a força explosiva, mais perto do conceito de potência () do que do de força máxima (trabalho executado para vencer cargas máximas), sendo frequentemente utilizados os flexores, extensores, abdutores e adutores dos membros cujos níveis de flexibilidade dos antagonistas deverão ser elevados, preferencialmente do tipo activo ou dinâmico - inteira relação com força.

Também a precisão é um factor determinante a ter em conta na obtenção dos pontos, porque o é para a aplicação eficaz da força, pelo que se considera importante a coordenação, principalmente a coordenação de velocidade, podendo-se mesmo referir então a agilidade, quando inter-influenciada pelas aptidões de velocidade e as de coordenação.

Por fim, pode-se falar em mobilidade ou destreza, ao se integrar especificamente a velocidade e coordenação com a força e flexibilidade.

O quadro seguinte procura representar esquematicamente a relação entre as qualidades físicas mais pertinentemente identificáveis para um nível de resolução de maior probabilidade de sucesso na prova de Kumité. No entanto não se olhem para estas qualidades físicas como "partes" essenciais, já que, desde logo, elas não existem; valem apenas por serem modelos[5] teóricos de enquadramento funcional de uma determinada faceta do movimento humano.

 


O TREINO

As Áreas Básicas do Treino Tradicional

Normalmente, no Karaté, as "[...] áreas básicas do treino [sistematizadas por Funakoshi Gichin (considerado um dos fundadores do Karaté moderno) são três] - Kihon[6], que é o treino nos fundamentos; Kata[7], que é o treino em exercícios formais; e Kumité[8], que é o jogo de combate (sparring)". (Nakayama, in Mclaren, 1988, p.27 - sublinhados nossos). Há que considerar, quanto a nós, uma outra área tradicionalmente importante, principalmente nas escolas de Okinawa (ilha ao sul do Japão, considerada como o "berço do Karaté"), que está intimamente relacionada com a aplicação dos exercícios formais num treino com parceiro; referimo-nos aos Bunkai[9].

Nakayama evidenciou nessa entrevista que "a fundamentação do Karaté do Mestre Funakoshi[10] consistia no desenvolvimento de fortes bases, primeiro, pela prática do Kihon e Kata, e depois na testagem daquelas técnicas em Kumité [...]. (Ibidem, p.28).

TOKITSU (1994, p. 118), no entanto, refere-nos as reticências claras que G. Funakoshi deixava à prática dos exercícios de combate livre que começaram a ser desenvolvidas no seu Shotokan, acabando mesmo Ôtsuka por criar o Wado-ryu. Por outro lado, refere-nos ainda o secretismo que os exercícios de combate tinham nas outras escolas de Okinawa.

De um trabalho anterior fica-nos evidenciado o facto de que o âmago da prática de Karaté no século XIX e antes da II Grande Guerra do séc. XX é, sem dúvida nenhuma, a prática dos Kata. Após este período, sob diversas influências, vão surgindo outras dimensões de treino no Karaté, com destaque especial para o Kumité. Hoje, embora desconhecendo correctamente as suas origens, temos identificadas quatro dimensões características: Kihon, Kata, Bunkai e Kumité.

AS DIMENSÕES FORMAIS DO TREINO DE

KARATE-DO

Quanto a nós, estas áreas básicas de treino, não devem ser interpretadas como exercícios de treino num sentido restrito; são sim grupos de exercícios, formalmente diferenciados e com conteúdos específicos de intervenção, só tendo significado quando perfeitamente integradas num processo que não se afasta do objectivo: tornar mais eficaz as acções do atleta em combate.

Ficar numa posição reducionista e demasiado presa aos formalismos evidenciaria um espírito excessivamente compartimentalizador, sem esforços sistémico-estruturalistas, após o racionalmente necessário esforço de sistematização.

 

"Mais" Treino

Uma das respostas fundamentais que têm sido encontradas para o aumento da performance do Karaté, tem sido a do aumento das cargas de treino, ou seja, o aumento das solicitações ao sistema humano através dos exercícios físicos, isso tem significado mais Kihon, mais Kata, mais Bunkai e mais Kumité.

Se aparentemente, quanto maior o número de variáveis que tivéssemos identificadas e controladas, melhor seria o controlo do processo, na "realidade", face à necessidade de agir, "aqui e agora", tal não se torna viável ao treinador que por isso encontra, melhor ou pior, um equilíbrio muito subjectivo. Procura-se um necessário[11] e mais seguro controlo do processo, como garantias de maior rentabilidade, ou seja, mais eficácia com mais economia de esforços face aos resultados possíveis, já que, numa analogia com a "lei dos rendimentos decrescentes", ao aumento das cargas de treino, não corresponde sempre o aumento da performance.

A esta não correspondência referida por Z. Wazny (1978), seguiu-se, continua este autor, um maior dinamismo investigador por parte dos cientistas especialistas em determinadas áreas específicas (fisiologia, biomecânica, psicologia, sociologia, etc.), que resultaram num número grande de dados perante os quais os treinadores se têm sentido mais ou menos inoperantes. Do extremo do "ensaio e erro" por falta de conhecimento fundamentado, passou-se para um aglomerado de dados que impossibilitam um tratamento exaustivamente global do problema; falta a tecnologia indispensável a este tipo de pesquisa, desde o início, pois as sínteses finais vêm sempre "contaminadas" com as referidas especificidades das compartimentalizações.

 

Fundamentação

Desde logo que aquela preocupação nos é importante no que se refere à abordagem da modalidade, e, preocupados com a significação das necessárias compartimentalizações, antes de tudo, fundamentamos a sua abordagem numa noção significadora que traduzimos em dois conceitos:

- Máxima eficácia

- Benefícios mútuos

E isto porque se objectiva o Homem na sua globalidade biopsicossocioaxiológica (Sílvio Lima).

Trata-se de um outro paradigma de enquadramento, não dicotomizador e reducionista ao quantificável, mas holístico e estruturador das funções essenciais do Homem em desenvolvimento.

A seguir, encontramos como motor principal da modalidade o combate inerme, cuja inerente riqueza situacional (eu-mundo) o torna um verdadeiro trampolim de procura de eficácia, e trampolim porque estádio de passagem que, além de dar um significado de "desporto de combate" ao Karaté, se torna um instrumento potencial de desenvolvimento e evolução do Homem actual, no sentido de o tornar cada vez melhor um ser humanamente eficaz.

Assim, os grupos de exercícios de Kihon, Kata, Bunkai ou Kumité, têm significado quando a sua expressão serve tais pressupostos e, desde logo, aí os fundamentamos, a estes e a quaisquer outros.


O EXERCÍCIO FÍSICO

Como necessidade

Os exercícios físicos, num sentido restrito e á luz da Teoria Geral do Treino são manifestações ordenadas e combinadas de acções motoras com exigências específicas sobre as estruturas fisiológico-funcionais, representando o meio mais importante ao dispôr de treinadores e atletas para a melhoria da prestação (Berger e Houptman, 1985, p.14).

Eles aparecem como uma necessidade pois o combate, a actividade por excelência e objectivo concreto do processo de treino desportivo do Karaté, por si só, não tem as situações suficientemente controláveis para permitir a rentável automatização dos gestos, de forma a que o indivíduo possa evoluir mais eficazmente, para as suas aplicações possíveis (táctica); neste sentido, a automatização é encarada como uma verdadeira "tomada de consciência", como o refere Luís Bom (in H. Barreto, 1980, p.36 ) ao tornar suas as palavras de Piaget, porque liberta o indivíduo do "como fazer".

 

Estrutura Cinemática e Exigência Funcional

 Hegedûs (1980) refere uma "estruturação", referindo-se por um lado à carga do exercício, no sentido da "exigência funcional", e por outro à sua forma no sentido do "aspecto cinematográfico" que, por alguns autores é referido apenas como "estrutura" (Hegedûs, 1980, p.23 ).

Logo aqui podemos destacar a importância que uma tal classificação pode ter para o treinador de Karaté pois, como quisemos fazer notar, é o aspecto  cinemático observável pelos juizes um factor determinante à obtenção da vitória em competição institucionalizada (a "boa forma" das regras), e isto para já não falar das provas de Kata.

Pode pois a manipulação incidir mais na estrutura cinemática do exercício (movimento do punho mais rectilíneo, rodar o pé de apoio, não dobrar tanto o tronco, etc.) ou, por outro lado, mais no aspecto das suas exigências funcionais (carga), referentes mais ao grau de esforço ou intensidade (mais ou menos repetições por unidade de tempo, mais ou menos rápido, mais ou menos Kime, etc.) e à quantidade total de trabalho ou volume (maior número de repetições, mais tempo em execução, etc.).

Note-se bem que a manipulação num destes aspectos pode ter, e normalmente tem, repercussões sobre o outro. O exercício é um todo e alterar a intensidade (nº de repetições por unidade de tempo) poderá provocar certas modificações na estrutura cinemática da execução, assim como a alteração desta provocará certamente alterações na carga funcional provocada no organismo; tal tem muito haver com um outro parâmetro de esforço, a complexidade, que estudaremos mais tarde, e pode ser utilizado como uma verdadeira forma de manipulação de treino, quer predominantemente técnico, quer físico, mas não só.

 

Forma e Conteúdo

À realização daqueles objectivos (automatização), estará inerente um processo de "repetição sistemática e orientada do exercício físico" (Jorge A. Soares, 1986, p.200). Este autor preocupa-se em referir dois "aspectos diferentes" no exercício: o conteúdo e a sua forma.

Dos exemplos dados, extrapolamos também que para o Karaté o conteúdo dos exercícios "é constituído pelos elementos técnicos presentes e pela respectiva aplicação táctica, ou seja, [...]" (ibidem), o mae-geri (pontapé frontal), o yoko-geri (pontapé lateral), o oi-zuki (soco directo do lado que avança o membro inferior), o gyaku-zuki (soco cruzado do lado contrário ao do membro inferior que avança), o age-uke (defesa alta), o uchi-uke (defesa média), etc., aplicados em acções de ataque, defesa ou contra-ataque, quer em situações mais simples sem ou com oposição, quer em situações mais complexas (cada vez mais próximas da realidade combate). Note-se que ainda nos elementos técnicos referido se incluem os tipos de guarda, os deslocamentos (tipos e direcções), os tempos de entrada (timing), o ritmo, as zonas ocupadas na área de competição, etc. O êxito da sua aplicação está dependente da sua prévia aprendizagem e aperfeiçoamento.

A forma do exercício refere-se à "organização que damos aos elementos (técnico-tácticos) considerados [...]" (ibidem, p. 201), podendo, como continua este autor, ser bastante diversificada. A extrapolação que fazemos diz respeito, por exemplo, a aspectos do tipo: tori (atacante) inicia este ou aquele ataque, encadeado com este, aquele e/ou aquele outro, aos quais o uke (defesa) corresponderá com esta e aquela defesas, para aqui ou para ali seguindo-se este ou outro contra-ataques; ainda: uke desloca-se mantendo a distância em relação a tori que, por seu lado, procura o momento de entrada adequado; etc. A organização formal dos exercícios no Karaté, deverá ir tendo em conta outros elementos técnico-tácticos específicos das acções de combate inerme, com uma progressão que vai do simples para o complexo.

Se "[...] o importante para a progressão dos jogadores (atletas) é a correcta aquisição dos elementos técnico-tácticos incluídos em todos [...]", (ibidem) os exercícios, ou seja, o conteúdo, devemos considerar muito importante a sua forma de organização, principalmente para responder ao problema "monotonia criada pela repetição do mesmo exercício" (ibidem). Por outro lado, a gestão da forma deve considerar os "diferentes graus de dificuldade e complexidade porque se tem gradualmente de passar, desde a aprendizagem inicial" (ibidem) de uma simples situação, até às relações complexas entre os possíveis momentos imediatamente antes e após num combate. Para além dos problemas de motivação com as necessidades de repetição não se podem esquecer as necessidades de variabilidade de condições de prática.

É importante não esquecer que o treinador, não perdendo os objectivos do exercício de vista, deve explicar e corrigir convenientemente a "execução dos elementos técnico-tácticos que o constituem (o seu conteúdo) [...] em função das várias situações que se forem deparando [...] no decorrer do exercício" (ibidem), tendo como preocupação importante que a atenção dos atletas não permaneça presa à questão organizacional do exercício em si, mas que tenda cada vez mais para o conteúdo.

Jorge Adelino Soares refere ainda que todas as componentes (ou factores) do treino estão presentes no conteúdo do exercício físico em maior ou menor grau. Será ainda necessário adequar a sua forma organizacional ao objectivo predominante de ordem considerada (físico, técnico, táctico ou psicológico) o que por sua vez deve ser permanentemente considerado na organização e planeamento do processo de treino (diário, semanal, anual, etc., ou melhor: unidades de treino, microciclos, etc).

 

Uma Classificação Geral de Exercícios

A utilidade de uma classificação de exercícios é notória para quem se preocupe em organizar e planear o processo de treino pois relaciona o que se faz com as suas consequências.

Berger e Houptman, propõem à discussão um modelo de classificação que se baseia, como outros, no grau de semelhança com as acções competitivas, considerando a estrutura do movimento, a sua função e a respectiva carga de treino, relativa à de competição. Veja-se o seguinte quadro.

 

CLASSIFICAÇÃO GERAL DE EXERCÍCIOS FÍSICOS

ESTRUTURA

DO

MOVIMENTO

 

FUNÇÃO

CARGA DE TREINO

(Relativa à Competição)

De

Competição

Formação e estabilização da prestação específica de competição

Específica de Competição/

/Ligeiramente diferente

 

 

 

Especiais

 

Formação acentuada e estabilização das capacidades funcionais

---------------------------------------

Aprendizagem acentuada e consolidação da habilidade técnica desportiva

---------------------------------------

Formação acentuada das habilidades técnico-tácticas e da capacidade táctica

Específica de C./

/Maior

---------------------------

Específica de C./Maior/

/Substancialmente menor

---------------------------

Específica de C./Maior/

/Substancialmente menor

 

 

 

 

 

 

Gerais

Formação da condição física de base

---------------------------------------

Aprendizagem das várias habilidades técnico-desportivas

---------------------------------------

Relaxamento emotivo, eliminação da monotonia, construção de um treino agradável

---------------------------------------

Repouso activo, recuperação acelerada, compensação

Maior/Inferior

---------------------------

Substancialmente menor/

/Inferior

---------------------------

Específica de competição

Inferior

---------------------------

 

Inferior

 

 

Note-se que tal classificação pode ser utilizada no Karaté-do, e a adaptação poderia ser feita no sentido de, numa, primeira impressão, incluir os exercícios de Kihon nos Gerais, os de Kata e Bunkai nos Especiais, e os de Kumité nos de Competição. No entanto tal não seria correcto principalmente no que diz respeito à sua função, em comparação com aquela e, no mesmo sentido, à sua carga de treino.

Convém relembrar que interessa ao treinador conhecer bem o conteúdo dos exercícios e, normalmente, quando se classificam os exercícios com base nas áreas básicas do treino de Karaté-do, diferenciando-os em exercícios de Kihon, Kata, Bunkai e de Kumité, está-se a diferencia-los mais pela sua forma organizacional e exterior do que pelo seu conteúdo.

Uma progressão que tenha tal por base será de se considerar incorrecta. Mas antes de avançarmos muito mais neste sentido, vamos perceber melhor o enquadramento ao nível das dimensões do treino comuns nos BUDO.


AS DIMENSÕES DO TREINO DE KARATÉ-DO

Vamos agora mergulhar ainda mais nesse universo particular, considerando aquilo que Kenji Tokitsu (1979) denomina como dimensões do treino de Karaté-do, colocando-se numa primeira a noção de Técnica Corporal numa segunda, as noções Maai e de Hyoshi, e numa terceira dimensão a noção de Yomi.

Primeira: Técnica Corporal

Aspecto formal e Aquisição de Força

Nesta primeira dimensão são referidos por Tokitsu dois aspectos importantes: por um lado a consideração das técnicas de um ponto de vista formal (forma particular de um golpe de punho ou de perna, ou de uma parada, ou de um deslocamento, etc.), e por outro, a sua consideração do ponto de vista da aquisição de força (considerada como "factor de eficácia" - Tokitsu, 1979, p. 53). Marcando que na prática estes dois aspectos aparecem reunidos, ele considera ainda a possibilidade de uma aprendizagem com uma progressão mais focalizada num ou noutro aspecto, dependendo tal de uma análise perante a diversidade causada pela diferença entre os indivíduos, e assim, dependente das diferentes condições físicas, motivações e duração de prática.

Aponta para o exemplo das crianças o facto de que elas facilmente aprendem o aspecto formal das técnicas, não podendo ir sem perigo à "aprendizagem da força", pelo que, aponta ele, as suas técnicas não podem ser "verdadeiramente eficazes" (ibidem, p. 53), devendo-se esperar pela maturidade indispensável que lhes "permitirá trabalhar em força, sem risco de deformação ou de acidente no decurso do crescimento" (ibidem, p. 54).

Por outro lado, com adultos em "muito boa condição física pode-se pôr á prova, dentro de certos limites, a sua eficácia antes de aprenderem realmente as técnicas na sua perfeição formal" (ibidem).

O Kime

É nesta primeira dimensão que Tokitsu orienta o treino para o desenvolvimento do kime[12] que ele coloca a cobrir duas características: "a perfeição formal do gesto e o grau de força elevado até ao limite" - que são os dois aspectos referidos para esta primeira dimensão, podendo inferir-se que o treino desta dimensão passa pelo desenvolvimento óptimo do Kime.

A perfeição formal dos gestos tem o momento decisivo que se "manifesta por um breve tempo de paragem num movimento harmonioso que corresponde, podemos dizer, a uma condensação do tempo, reunindo aquele que faz o gesto [...]" com a situação em si mesma. O sujeito deve como que "[...] existir completamente nesse acto sem distâncias [...]: o gesto, o espaço, o ambiente, o objecto e o eu devem formar um todo (ibidem, p. 57).

O grau de força elevado até ao limite é explicitado por este autor ao começar por referir que "O Kime será elevado ao seu máximo quando a forma corporal for plenamente realizada, incluindo a força elevada até ao limite". (ibidem). A seguir refere a "constatação" de que " [...] existe um limiar psíquico que impede o corpo humano de funcionar no seu limite permitindo-lhe assim manter um equilíbrio a um tempo psíquico e físico" (itálico nosso), lançando a "hipótese que o Kime, respeitante á força elevada ao máximo, pode ser realizado somente para lá desse limiar, em certos momentos escolhidos da execução técnica". (ibidem, p. 59).

Para além do pressuposto baseado em recolhas de dados de experiências hipnóticas e em relatos de situações extremas, Tokitsu baseia o pragmatismo daquela hipótese no pressuposto de que "o processo de execução de uma técnica poderá funcionar como um estímulo interior para dirigir á ultrapassagem de um limiar e, no momento em que forma técnica deriva em Kime, a força será elevada para lá desse limiar" (ibidem).

 

Linhas de Investigação

A sua preocupação como homem de ciência permite-lhe apontar a falta de estudos experimentais sobre a existência do Kime que, refere ainda, tem sido constatada pelos adeptos das diferentes formas de Budo (vias ou artes marciais que costumamos referir como desportos de combate tradicionais do Japão) nos anos passados, tornando-se "indispensável um trabalho de investigação objectivo sobre o limiar e, para lá, sobre o processo de Kime; de seguida, sobre o estado psíquico e físico no momento em que se ultrapassa tal limiar"(ibidem, p.60).

 

Segunda: Maai e Hyoshi

Maai-Hyoshi

   "A segunda dimensão comporta duas componentes que se interpenetram, o maai e o hyoshi [...]" (Tokitsu, 1979, p.65). Ma exprime distância quer no sentido de intervalo de espaço, como no de intervalo de tempo, e o verbo ai "exprime um reencontro entre duas pessoas ou objectos" (ibidem). Assim, diz-nos Tokitsu, Maai exprimirá um "[...] movimento de aproximação e afastamento entre pessoas ou objectos" (ibidem, p. 66), movimento entendido num sentido espaço-temporal, pelo que poderemos entender desde já a intrínseca relação com a noção de Hyoshi, ao integrar dois tipos de "movimentos": um em relação a si mesmo, e outro em relação ao adversário, sendo esta dicotomização uma referência possível para a análise do Kumité.

Se Maai tem a ver com a distância espaço-temporal relativa (de si para si ou de si com o outro), Hyoshi tem a ver com o estado de modificações sucessivas que o Maai vai tendo no desenrolar do combate, ou melhor, do exercício, principalmente nos de Kumité, ao pôr em interacção directa dois sistemas abertos complexos, com distâncias próprias e entre si (Maai), e no ritmo de evolução que vão tendo no desenrolar do combate (Hyoshi).

Quando ambos os ritmos (Hyoshi) ou cadências estão concordantes, não há iniciativa explícita que frutifique em ataque eficaz pois os movimentos completam-se e evitam-se, como se estivessem "parados". É como se os momentos de "equilíbrio" e "desequilíbrio" de um dos sistemas coincidissem com os do outro.

Quando se toma a iniciativa (sen), das duas uma: ou se encontrou um momento de fraqueza no adversário, coincidente com um momento forte de quem toma a inciciativa ou então procura-se criar esse momento particular (momento de entrada) de hyoshi discordante, ou seja, procura-se criar desarmonia entre si mesmo e o adversário.

Torna-se importante encontrar e conhecer bem o nosso Hyoshi, assim como desenvolver as capacidades de encontrar e conhecer o do adversário, para, perante a situação saber tomar a iniciativa correctamente. Devem existir exercícios próprios para esse desenvolvimento.

Iniciativa em Combate: Sen

HABERSETZER refere-nos que existem "[...] duas formas superiores de iniciativa" (vol. 2, p.169) que aqui colocamos após uma primeira:

- Sen (iniciativa) quando se toma a iniciativa atacando.

- O Go-no-sen (contra, sobre a iniciativa do adversário) que significa que existe um momento de ataque do adversário, ao qual se segue um momento de defesa e um terceiro momento de contra ataque.

- O Sen-no-sen (iniciativa sobre a iniciativa do adversário), onde não existe o momento de "defesa", mas sim um contra-ataque antes que o ataque adversário possa terminar.

Estas formas de iniciativa são mais desenvolvidas por Tokitsu ao referir, "do ponto de vista da cadência [...] o processo de progressão em blocagens e contra-ataques" (1979, p.77), através de cinco etapas:

   Primeira: ton-ton-ton; ataque, blocagem e contra-ataque perfeitamente diferenciados.

Segunda: ton-toton; embora as cadências do que ataca e do que defende estejam separadas, o contra-ataque é imediato à blocagem: toton.

Terceira: to-ton; o ataque do adversário é interceptado por um contra-ataque, tornando aquele ineficaz.

Quarta: ton; "o contra-ataque chega ao adversário antes que o ataque deste último saia do seu espírito: a sua vontade de ataque ainda não foi concretizada".

Quinta: "..."; "alguns interpretam a cadência de 'nada' como aquela que permite prever o combate e então de se afastar de forma que o mesmo não tenha lugar". (Tokitsu, 1979, pp. 77-78).

 

V.2.3. Referencial

Tokitsu refere que "a aprendizagem correcta dos Kata ajuda ao desenvolvimento do hyoshi em relação a si mesmo[...], [enquanto] certas formas de combate convencional fazem evoluir no hyoshi em relação ao adversário".

Há no entanto que relembrar a importância do treinador conhecer bem o que se entende por kata, e por kumité convencional (o yakusoku), tendo em mente que interessarão preferencialmente os seus conteúdos, ou seja, os seus elementos técnico-tácticos, indissociáveis da forma organizativa como se apresentam, mas sendo aqueles os que o treinador nunca pode esquecer de utilizar no doseamento específico para a situação diagnosticada. Alertamos isto pelo facto de se poder passar por cima desta questão fundamental, ou seja, ficar preso a uma receita, a uma qualquer forma organizativa de alguns conteúdos que correm o risco de não serem os adequados para os objectivos pretendidos na outra situação em que se aplica.

É essencialmente tendo isso em linha de conta que "[...] o kata se oferece como um excelente exercício para o assimilar das cadências de combate", permitindo "[...] alargar a nossa capacidade de sincronização das cadências" já que são muitas as que "se sucedem em cada kata" e de kata para kata, dirigindo-se também este exercício para "[...] encontrar a articulação dos gestos entre si" (ibidem, p.93). É naquele sentido que entendemos estas referências de Tokitsu, Funakoshi, etc., pelo que evidenciamos bem a necessidade de referenciar, neste caso, os exercícios de kata com o combate, o que nem sempre acontecerá, ou seja: sendo a actividade fundamental o combate inerme, interessa a ele referenciar todos os exercícios físicos utilizados, que aparecem como uma necessidade face ao objectivo de melhoria das aptidões para aquela actividade que por si só não contém as situações que permitam uma racional e controlada evolução eficaz rumo aos objectivos pretendidos.

Além do problema da precisão (espaço-tempo) da execução e da tomada de iniciativa (sen), a relação com o outro levanta o problema da sensibilidade à concordância e/ou discordância do hyoshi. Vamos penetrar pois na terceira dimensão.

 

V.3.  Terceira: Yomi

Intimamente relacionada com as anteriores, Yomi refere-se à "arte de adivinhar e de prever o adversário" (Tokitsu, 1979, p.97 ), o que tem  muito a ver com o trabalho de Hara-gei ("arte ou técnica do ventre") (ibidem, p.117). "[...] yomi não se limita a descodificar uma expressão concreta, compreende igualmente a arte de adivinhar e de prever as ideias, os pensamentos os sentimentos, as vontades e os desejos." (ibidem, p.98).

A linguagem analógica dos mestres Japoneses nas tradicionais noções dos Budo, tem permitido diversas interpretações. De forma alguma negamos a sua validade nos Budo e especificamente no karaté-do; achamos mesmo imprescindível e encaramo-la como uma útil forma de transmissão de conteúdos. A arte de adivinhar e prever o que quer que seja, quanto a nós tem a ver com a capacidade de interpretar indicadores referentes á situação observada. Yomi terá a ver então, no karaté-do, quanto a nós, com a capacidade de ler a situação de combate.

Se tal capacidade perceptivo-motora melhora com a "[...] acumulação de treinos e a prática de combate" (ibidem), è porque é treinável. No entanto, na sociedade actual, convém criar condições para que tal aconteça o mais rentavelmente possível, ou seja, que se chegue à máxima eficácia com o mínimo de custos possíveis, pelo que na selecção dos conteúdos nos exercícios de kihon, kata, bunkai e kumité, tal terá que ser considerado.

Estamos na posição para concluir da importância da selecção e utilização racional dos conteúdos focados nas dimensões do treino tradicionais, sem reducionismos "anti-tradicionais" ou pró-modernistas. Neste trabalho queremos deixar bem patente um espírito pesquisador de campos diversos, conscientes de que falar de karaté-do é referir implicitamente que não há "o karaté", mas "karatés". Há objectivos e há metodologias a atingir.

DIMENSÕES DO TREINO


FACTORES OU COMPONENTES DO TREINO

O Que São

Antes de abordar alguns parâmetros de esforço, consideramos indispensável fazer uma curta abordagem aos factores de treino, como referenciadores possíveis de grupos de exercícios e tarefas no treino de karaté-do.

Sem intenções de fazer uma abordagem pormenorizada, preocupar-nos-emos em referir alguns aspectos exemplificativos que justifica a posterior necessidade de serem especificamente tratados em investigações futuras.

Normalmente são considerados quatro factores de treino: a preparação física, a preparação técnica, a preparação táctica e a preparação psicológica, com uma grande independência entre si. Autores há que, além destes, consideram um quinto: a preparação teórica.

 

Sua Dinâmica

O exercício físico, ao solicitar mais ou menos complexamente o sistema humano, fá-lo de uma forma global, pelo que é de utilizar este facto e compreender que não há exercícios exclusivamente "físicos", ou exclusivamente "técnicos", ou exclusivamente "tácticos", ou ainda, exclusivamente "psicológicos". O combate é uma actividade onde todos estes e quaisquer outros factores se encontram englobados, tal como em qualquer exercício. O que existe, na realidade é uma certa preponderância; por exemplo: fazer flexões e extensões dos membros superiores em decúbito ventral ("flexões de braços"), embora tenha aspectos técnicos próprios e, dependendo dos objectivos dados, poderá ter uma interpretação táctica, além de algumas componentes psicológicas importantes evidencia-se claramente que, para o Karaté, deverão ser os aspectos físicos os mais  relevantes.

A sistematização dos referidos factores serve para ajudar o processo de gestão de treino. Sendo um referencial importante na análise dos atletas, no diagnóstico e na prescrição da sua preparação, permite esboçar áreas mais específicas de preocupação e, assim, de intervenção pelo treino. Tal torna-se ainda mais evidente com a competição institucionalizada, ao aparecerem prementemente as preocupações com tal preparação, de época para época, que leva á sua divisão em vários períodos, do geral para o específico, de forma a responder cada vez com mais eficácia aos princípios de treino.

Preparação Física

Assim, no período preparatório, a preparação física geral e específica assumem importância preparatória relevante ao permitirem, por um lado, utilizando exercícios gerais com acção indirecta, elevar multilateralmente a capacidade funcional do organismo, diminuir as possibilidades de lesão, preparar por transferência positiva a aprendizagem de novas habilidades; por outro lado, utilizando exercícios específicos com acção directa, um desenvolvimento especializado correcto das capacidades funcionais, o que normalmente ultrapassa a exclusividade de utilização restrita das habilidades em si. Por exemplo: a flexibilidade específica para o Yoko-geri não se aumenta rentavelmente a fazer apenas Yoko-geris, mas utilizando métodos específicos para esse objectivo.

Esta preparação é fundamental logo desde o início da época, porque os atletas vêm de um período de transição, no qual a capacidade funcional (forma física) retomou níveis mais próximos dos basais. Esta componente deve ser fonte especial de preocupação e planeamento eficazes, nunca assumindo incoerências com o treino global do karateca.

 

Preparação Técnica

A Técnica

Geof Gleeson refere uma diferença algo importante entre "técnica" e "destreza" (skill), considerando aquela como "[...] o uso do corpo [...] na execução de um efeito pré-determinado [...]", e esta como "[...] a aplicação, e assim a adaptação, da técnica, numa situação sempre em mudança". (G. Gleeson, 1983, pag. 20), considerando mais à frente que, face a tais características, "[...] é impossível descrever, em termos gerais, uma destreza específica" (ibidem, pag. 21).

Por outro lado NEUMEIER e RITZDORF (1994, p.20) referem "técnica desportiva" como "modelo ideal de um movimento que serve para resolver uma tarefa específica, e que portanto é analisado prescindindo das pessoas que o executam", enquanto a "técnica individual" ou a "técnica pessoal" são conceitos que se aproximam do "estilo", ou seja, face às características particulares do executante, o modelo técnico geral torna-se concreto no indivíduo, sendo, por isso mesmo, um objectivo próprio do treino (desenvolvimento da técnica individual defensiva, etc.).

Conscientes do uso corrente do termo "técnica", quer nos dojo (locais de prática), quer nos livros de Karaté-do, quer nos filmes, comunicação social, etc., com estas noções só pretendemos marcar bem a importância que tem a situação como referenciadora imprescindível da forma eficaz de a resolver: A técnica. Esta pode ser dicotomizada em, por um lado o elemento técnico - o tsuki (socar), o geri (pontapear), etc. - que se refere a aspectos identificadores fundamentais, básicos; por outro lado teremos o procedimento técnico - oi-zuki, gyaku-zuki, tate-zuki, ura-zuki, etc., ou mae-geri, yoko-geri, mawashi-geri, etc.- que se refere ao modo de executar sem ter a ver com o estilo que, por sua vez, é a forma individual de executar a técnica (BOMPA, 1994, p.59).

 

Preparação Táctica

 Strategos em Grego significa um governador civil e militar (general) de uma província e taktika refere-se às formas de disposição. Na teoria geral da guerra, enquanto a estratégia está subjacente à construção do plano de guerra, com decisões respeitantes ao "aonde" combater o inimigo, a táctica refere-se especificamente ao campo de batalha, ao "como" o combater.

No desporto os termos "táctica" e "estratégia" têm a ver com a "arte de executar uma habilidade numa competição com oposição directa ou indirecta" (BOMPA, 1994, p. 62). 

Numa primeira interpretação para o Karaté, podemos definir que a Estratégia se prende com a organização da participação de um indivíduo ou equipa numa competição determinada ou mesmo para um conjunto de competições. Refere-se a um período alargado que pode coincidir com o período competitivo em si mesmo. A Táctica terá, assim, mais a ver com o plano utilizado para uma prova ou para um combate em si mesmo. está relacionada, numa primeira linha, com o significado concreto da técnica, o que tem a ver com a existência concreta do adversário (situações de Kumité).

No entanto somos mais próximos de uma outra ordem de interpretação. Para o Karaté será mais adequado definir Estratégia como o fundamento do plano que aumenta as hipóteses de vencer um combate, cuja construção depende da informação disponível para esse fim (autoconhecimento; conhecimento do adversário; conhecimento dos Juizes; conhecimento do ambiente de competição; etc.). Por outro lado, Táctica será o racional uso de uma técnica numa dada situação.

Estratégia implica planeamento e significa saber o que fazer para vencer.

Táctica implica actividade perceptiva e significa saber o que fazer concretamente.

Táctica e Estratégia estão dependentes e limitados pelas habilidades individuais (capacidade funcional, condicionantes anatómicas, técnicas, mentais).

Assim, a componente Táctico-Estratégica, num domínio de actualidade, refere-se ao que podemos realmente fazer com aquilo que temos; num domínio de virtualidade refere-se ao que poderemos vir a fazer com aquilo que iremos desenvolver.

 

Preparação Psicológica

A preparação psicológica oferece-nos diversos exercícios de auto-controlo, como sejam os baseados nas técnicas de bio-feedback, de relaxamento, respiração controlada, sofrologia, etc., com o intuito de baixar os níveis de ansiedade, de stress, etc., principalmente perto das competições.

Por outro lado, o estudo da percepção, concentração e atenção e respectivo treino estão relacionados com esta preparação e, no Karaté, pela sua dimensão perceptiva enorme, tem grande relevância.

As técnicas de motivação e de liderança serão, ao nível do treinador, importantes para uma boa condução do treino.

 

Preparação Teórica

Sem entrarmos em grandes considerações, apenas queremos referir que a transmissão das noções tradicionais, faz parte integrante como conteúdo da modalidade, inserindo-se no próprio processo de treino, como preparação teórica. Visa-se a preparação global do indivíduo no sentido da máxima eficácia e dos benefícios mútuos já referenciados, o que não nega de forma alguma a seriedade de trabalho na competição institucionalizada, ou noutras facetas possíveis com a modalidade. Com tal preparação, serão dadas informações úteis sobre as bases da modalidade (as científicas e as que não são), incentivando-se o estudo de livros, artigos de revistas, filmes, etc., como essencial para a evolução global do karateca, lançando-se propostas de realização de exposições, colóquios, debates, etc., sobre temas de investigar e divulgar: lesões e tratamento, nutrição adequada, evolução histórica de um Kata, etc.

Por outro lado, temos as regras de competição que o Karateca deve conhecer, assim como toda a problemática que encerra o enquadramento competitivo institucionalizado.

Queremos ainda realçar a importância de despertar o sentido da análise, quer em termos de observação dos parceiros, quer em termos da auto-observação no sentido de aperfeiçoar as capacidades de autonomia dos indivíduos. Note-se também que a preparação teórica é considerada factor de treino, no sentido de evidenciar a importância da sua tomada em conta na organização e planeamento do processo de treino; não quer de forma alguma significar obrigatoriamente "sessões teóricas" (no sentido "anti-prático"), antes pelo contrário, tal deverá ser tido em conta em todo o processo de treino, desde a simples tarefa "x" na unidade "z", até ao período "y" do macrociclo "u".

Tais conteúdos devem ir permitindo aperfeiçoamento dos raciocínio táctico, por exemplo, que é fundamental para o combate e, quanto a nós, esta questão centra-se na dimensão de yomi (leitura da situação), no sentido da procura do tempo determinante de entrada, que, por exemplo, tem a ver com capacidades perceptivo-motoras, como sejam a atenção e concentração, a sua focalização, o tempo de reacção, etc.

 

COMPONENTES OU FACTORES DE TREINO

Evidencie-se desde já a compatibilidade entre estes factores de treino e dimensões tradicionais dos Budo.

"Shu" - Modelo Técnico

Os mestres-treinadores têm concebido, quer pela experiência empírica, quer em base em investigações experimentais, determinados modelos ideais de técnicas desportivas e tradicionalmente muita importância lhe é atribuída; recordemos que o primeiro estádio de aprendizagem tradicional é precisamente Shu: "respeitar, seguir o modelo ou a forma ideal [...] " (Tokitsu, 1979 pg. 91), "imitação exterior das técnicas" (Habersetzer, 1986, vol.1, pg. 9). Também com a competição actual se pode vir assistindo ao sedimentar de "modelos ideais" de acções competitivas.

   Tal modelo técnico, ideal não é acessível a qualquer principiante, pelo que se têm de ensinar primeiro "pré-modelos", mais simples, que permitam uma racional evolução. Terá sido por tal que se coloca tradicionalmente uma certa lógica de progressão em exercícios de Kihon, Kata-Bunkai e Kumité. Note-se no entanto que a execução técnica tem em conta um "suporte" determinado pela preparação física do atleta, ou seja a técnica é determinada em grande medida pelas qualidades físicas.

 

Técnica-Táctica - "Ha" e "Ri"

Por sua vez, um bom suporte técnico, rumo à automatização aperfeiçoada, é factor indispensável à libertação para a sua aplicação correcta em combate (táctica), sendo mesmo a falta daquela considerada como factor limitativo desta. No entanto, e nunca será demais referi-lo, o importante para o progresso dos atletas é o conteúdo dos exercícios, com os seus elementos e procedimentos técnicos e tácticos presentes, não se devendo, os treinadores preocupar-se tanto com a aprendizagem da forma de organização do exercício que, note-se, ao se tornar historicamente um aspecto muito importante na faceta fanática militarista característica no Japão durante os primeiros momentos de massificação do Karaté em Okinawa e mesmo nos finais da II Guerra Mundial, se tornou "o" aspecto fundamental para alguns praticantes, e que após "exportação" formal, se espalhou como tal por todo o mundo. Tradição não é sinónimo de militarismo.

A imitação tem razão de ser em relação aqueles conteúdos e não aos aspectos formais, e se apesar de só se transmitirem aqueles por uma determinada forma organizacional de exercícios, a sua manipulação deve ser sempre feita tendo em vista tal relação essencial. Tal deve ficar claro para o treinador, e estando presente na sua consciência, não deve no entanto baralhar a do atleta que, inicialmente, se preocupará com a imitação da movimentação técnico-táctica apresentada, interiorizando-a como modelo referenciador, pelo que a sua qualidade deverá ser elevada e o mais real possível.

Já num segundo estádio - Ha - existirá um esforço pessoal de "[...] aperfeiçoamento de um estilo" (Tokitsu, 1979, pg. 92), ou seja "a identificação profunda com a coisa ensinada" (Habersetzer, 1986, pg. 9), para que a seguir, num terceiro estádio - Li ou Ri - exista "o renascimento, o despertar, a mestria" (Habersetzer, idem), ou seja, um "libertar-se da forma" (Tokitsu, 1979, pag. 92).

 

Estádios - Princípios do Treino

Não pretendemos aqui negar tal lógica de progressão no processo de aprendizagem e aperfeiçoamento do Karateca. No entanto, não podemos deixar de referir que há que não aceitar tal absolutismo de uma forma formal. Também a negação pela mesma via é considerada inadequada. Estas propostas metodológicas são de conhecer, mas principalmente são de se conhecer os seus conteúdos, tendo perfeita consciência da aplicabilidade dos princípios de treino, que de forma nenhuma colocamos em antagonismo aos tradicionais estádios de treino, quando correctamente interpretados, ou seja, quando a forma de organização dos conteúdos da progressão Shu - Ha - Li (ou Ri) responde racionalmente aos princípios de treino: desenvolvimento pluri-facetado, progressivo, contínuo, e alternado, rumo à especialização, sem perder de vista a necessidade de individualização e de consciencialização do processo de treino.

Especificando mais sobre o tema central do trabalho, passemos a um outro aspecto importante a ter em especial consideração nos exercícios físicos do Karaté-do.

 


PARÂMETROS DE ESFORÇO

Os exercícios físicos são importantes no processo de treino se permitirem potencialmente o controlo eficaz das suas consequências. É da selecção dos objectivos para o processo de treino, desde os macrociclos até à sessão ou unidade de treino, que se faz o seleccionamento dos exercícios mais adequados à situação específica diagnosticada, da forma o mais controlada e controlável possível, para que o papel do acaso seja reduzido, garantindo assim maiores probabilidades de êxito. Os exercícios deverão ser, então, previamente organizados e seleccionados, o que certamente implicará duas intervenções principais:

- Conseguir identificar claramente os objectivos dos exercícios.

- Intervir controladamente quer sobre a sua forma, quer sobre o seu conteúdo.

É claro que o doseamento eficaz implica um pormenorizado conhecimento do que em Teoria Geral do Treino denominados como Parâmetros do Esforço. Convém frisar bem que tal doseamento aborda o exercício físico de uma forma sistemática, isto é, intervir na estrutura cinemática ou na exigência funcional, na forma organizativa ou no conteúdo do exercício, é intervir directa ou indirectamente nos referidos parâmetros de esforço, e tal deve ser tomado em conta na organização e planeamento do processo de treino, tendo consciência que um exercício físico tem diversas influências, umas mais dominantes que outras, competindo ao treinador o trabalho de adequação imprescindível das exigências específicas dos exercícios, aos objectivos estabelecidamente pretendidos, o que passa também pelo "jogo" com os parâmetros de esforço, sem esquecer factores que digam respeito aos objectivos educativos, de desenvolvimento da criatividade, da autonomia, do raciocínio, dos "reflexos" de orientação, enfim, do desenvolvimento Biopsicossocioaxiológico do Indivíduo-Homem.

Normalmente, na maioria dos exercícios, são considerados os parâmetros de esforço que a seguir se vão expor. (José Curado, ano lectivo 87/88).

A duração do esforço representa o tempo durante o qual o esforço actua como excitante sobre o organismo, medindo-se portanto em unidades de tempo (horas, minutos, etc.). Por vezes difere bastante da duração temporal total da unidade de treino (relação com a densidade de esforço).

A densidade do esforço é a relação entre a duração do esforço de cada tarefa-exercício e a duração das pausas que se lhe seguem, expressando-se através do resultado numérico da relação, ou em percentagem.

As repetições são o número de vezes que uma determinada tarefa-exercício tem de ser realizada ou repetida, durante um determinado período.

A pausa entre repetições diz respeito ao intervalo de tempo entre dois esforços de cada tarefa-exercício, destinado a garantir a recuperação pretendida (normalmente parcial), do praticante.

A série é um grupo de repetições, bem delimitada, constituindo uma unidade própria.

A pausa entre séries, como intervalo de tempo entre elas destinado também a garantir a recuperação pretendida do praticante, costuma geralmente ser superior à pausa entre repetições, e isto atendendo `possível e até desejável fadiga acumulada entre estas últimas.

A intensidade do esforço ou carga externa diz respeito à quantidade de trabalho mecânico prestado na unidade de tempo, ou que o atleta tem de realizar na unidade de treino ( sessão de treino ). Avalia-se em unidades de potência (kg. levantados), em velocidade de deslocação (m/seg.), sendo o mais usual no karaté-do, em tempo de trabalho, o que está intimamente relacionado com a velocidade segmentar (número de execuções por minuto).

O volume de esforço, por sua vez, já diz respeito à quantidade de trabalho mecânico, ou seja, a soma de todos esforços prestados pelo atleta, e pode ser expresso pela soma das quantidades de peso levantadas na unidade de treino (quando do treino de força por exemplo), ou a soma das distâncias percorridas, ou, o mais utilizado no karaté-do, a soma de todos os exercícios executados ("físicos", "técnicos", "tácticos", etc.).

A intensidade de solicitação ou carga interna representa o nível funcional individual necessário para o prestação de um esforço com uma determinada intensidade, dependendo então da capacidade do esforço individual. Observa-se através de indicadores fisiológicos como a frequência cardíaca, a frequência respiratória, as modificações bioquímicas no sangue, etc., podendo utilizar-se uma apreciação percentual em termos de capacidade máxima do indivíduo (60% da frequência cardíaca máxima, por exemplo), ou por fraccionamento (três quartos, etc.).

A complexidade do esforço refere-se à quantidade das acções motoras efectuadas simultaneamente durante uma determinada actividade, e é um parâmetro que, tal como outros, deve ser individualizado a cada atleta ou grupo uniforme de atletas.

A frequência das unidades de treino é um aspecto que diz respeito ao ritmo de como elas se sucedem, a completar à duração das unidades de treino. Todos dias, três vezes por semana, duas vezes em todos os dias, etc., duas horas, etc.

Existe uma dinâmica entre estes parâmetros e outros que possam ser identificados, de tal forma que intervir sobre um implicará intervenções de ajustamento noutro(s).

Quando o treinador intervém no exercício através de uma das dimensões do treino, modificando por exemplo o Maai (distância) entre os "parceiros", tal está a ter repercussões sobre a solicitação exigida aos indivíduos, a vários níveis: tempo de reacção, processamento de informação, atenção, concentração, percepção, motivação, stress, ansiedade, etc. (factores "psicológicos"); velocidade de execução, resistência ao esforço, amplitude do movimento, etc. (factores "físicos"); tipo de elementos técnicos possíveis, como, deslocamentos, movimentos finalizadores, etc. (factores "técnicos"); sua interligação e utilização como forma de solicitação do raciocínio táctico, maiores ou menores possibilidades de utilização de determinados elementos e procedimentos, capacidade de decisão, tempo de entrada, etc. (factores "tácticos"); etc.

Julgamos imprescindível esta dinâmica sistémico-estruturalista, num sentido contingencial em que tudo tem a ver com tudo, mas frente à qual não podemos ficar inactivos. Perante tal, conscientes das nossas limitações diversas, há que utilizar tudo aquilo que tem dado resultados e que permite um controlo superior das situações pelo controlo das variáveis rentavelmente identificáveis.

Aqueles parâmetros de esforço complementam o trabalho de organização e planeamento do processo de treino desportivo actual no Karaté-do e de forma alguma são a negação do trabalho tradicional, antes são um imprescindível complemento para aumentar a eficácia da acção do treinador.

Solicitar o aumento do Kime na décima repetição da segunda série de um exercício de Kihon através do Kiai é, por exemplo, uma forma de intervir sobre um conjunto de parâmetros de esforço, inter-relacionados com os factores de treino, sobre os quais é conveniente ter controlo. Não deve ser o acaso ou o mero hábito "tradicional" (e isto não é tradição), que devem ditar a condução do treino, ou aula, ou seja o que for, no Karaté-do.


CONCLUSÃO

O karaté não surgiu de um momento para o outro. É um produto essencialmente cultural que não se gerou espontaneamente, mas que tem acompanhado o Homem, na sua vivência, no seu desenvolvimento, adquirindo significados característicos a cada época, a cada tempo e espaço específicos, significados esses que têm uma real importância antropológica, sendo sincronicamente "biológicos" (anatómico-funcionais: eficácia corporal das técnicas) e "culturais" (histórico-sociais: transmissão e selecção- evolução dessas técnicas corporais), não existindo um sem o outro.

O Homem, para sobreviver, actuou sobre si e sobre o que o rodeava. A experiência transmitida no seio do seu grupo foi sofrendo readaptações dependentes das situações do presente vivido face ao passado conhecido. Assim, a sistematização das técnicas corporais reflectiriam o seu meio ecológico, factores religiosos, políticos, éticos, económicos, elementos raciais, anatómicos, enfim as relações entre o tipo de indivíduos e o seu mundo característico.

A génese da luta, no Oriente, organizou métodos de combate e de ensino dos mesmos que reflectem aquela cultura e Homem característicos.

Hoje, as diferenças culturais são cada vez menos desconhecidas (maior comunicação), sendo praticado nas mais diversas culturas e pelas diferentes raças humanas.

Tende cada vez menos a ser um conjunto de técnicas, para ser cada vez mais um conjunto de princípios de acção.

O objectivo geral será a superação característica das actividades humanas. Tem no entanto, a forma de o conseguir, suscitado alguma polémica que surge ligada ao problema taxonómico de se o karaté é uma "arte marcial" ou se é um "desporto de combate" . Claro é que estes problemas aparecem porque o karaté tem permitido, e permite, diversos significados que correspondem a situações antropológicas características." (Horizonte, 1987).

Com a elaboração deste documento, não se pretendeu de forma alguma chegar a uma "listagem" de exercícios físicos para a modalidade; contudo, o objectivo foi, de certo modo, o de investigar os seus pressupostos básicos, o que quer dizer que se o ponto central deste trabalho foi o exercício físico no karaté-do, tal não será desligado de questões a ele inerentes, como sejam, por um lado a caracterização da performance na modalidade, os princípios gerais do treino, as suas componentes, etc, como preocupações da Teoria Geral do Treino, e por outro lado, com o que de Tradicional se consiga identificar no karaté-do, o que está intrinsecamente ligado aos Budo (desportos de combate tradicionais do Japão), e assim, à sua cultura de origem, a Nipónica.

Procurou-se evitar tomadas de posição polémicas e pré-concebidas em relação às concepções mais ou menos "marcialistas", ou mais ou menos "desportistas", havendo sempre a preocupação em incidir em questões que se podem considerar num outro nível daquelas. Neste sentido, o esquema seguinte pretende, de certo modo, esclarecer um pouco mais, as concepções inerentes a este documento.

 

 

As áreas base do treino são o "dicionário" tradicionais de exercícios do karaté-do, com quatro grupos fundamentais: Kihon, Kata, Bunkai e Kumité. Destes são retirados exercícios consoante a situação diagnosticada, que se devem tornar mais controláveis através da manipulação específica de parâmetros de esforço.

As tradicionais dimensões de treino, são uma forma global de abordar os exercícios classificados em termos de componentes ou factores do treino, particularizados especificamente pelos parâmetros de esforço.

Os três estádios clássicos de treino devem ser encarados na lógica dos princípios do treino.

Assim, os exercícios de karaté-do, são uma resposta que joga com os conteúdos das diversas noções consideradas, face aos objectivos específicos pretendidos, tomando então formas organizacionais peculiares que permitirão com maior ou menor eficácia, a sua realização, que se insere, por sua vez, em referências particulares à actividade fundamental da modalidade, respondendo com uma fundamentação preciosa ao desenvolvimento e aperfeiçoamento do Homem, encarado como unidade complexa biopsicossocial.

Neste sentido, está confirmada a hipótese de partida e conclui-se que os conhecimentos teóricos tradicionais aqui investigados, quando interpretados da forma abordada, não são incompatíveis com os conhecimentos da teoria geral do treino desportivo, servindo ambos na tarefa de aumento da eficácia atrás referida.

Mais uma vez, a "distância" entre "arte marcial" e "desporto de combate" surge perfeitamente esbatida. Neste sentido, é justificada a permanência do karaté-do no domínio das actividades corporais contemporâneas, porque, ajustada para o Homem de hoje-amanhã, continua a sê-lo com significado. A pedagogia do karaté deverá sê-lo realmente.

Não há razão nenhuma para dicotomizar o Karaté em duas taxonomias que se pretendem divergentes. O fenómeno competitivo moderno não nega qualquer outra via, sendo mesmo auxiliar para a evolução humanizante dos indivíduos. Arte marcial e desporto de combate serão dois significantes de tal significado último perfeitamente justificado.


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[1]"Kara" é o vazio e "té" é a mão; ao divulgado significante "Karaté" - mão vazia - adicionamos preferencialmente o termo "do" - o caminho ou a via -, como expressão explícita do significado a que nos referimos, mesmo quando utilizamos simplesmente o significante Karaté: a via da mão vazia.

[2] CARRON, Albert, V., Motivation - Implications for coaching and Teaching, London-Ontario-Canada, Sports Dynamics, 1984, p.3.

[3]Trata-se de uma das provas de suporte do surgimento da nova FMK (Federação Mundial de Karaté). Pretende-se que assim se extingam quer a WUKO quer outras Federações Internacionais com algum peso como é o caso da ITKF. Falta saber se realmente a distância entre as várias organizações internacionais ficou diminuída...

[4] Zan: "subsistir" ou "ficar". Shin: "o espírito". "[...] No essencial, a técnica [...] provém do espírito [...]" (K Tokitsu, 1979, p.164). "[...] Zanshin é um espírito alerta, sempre vigilante, sempre livre." (R. Habersetzer, 1986, p.40). Mesmo após o impacto, permanece um certo estado de espírito inerente ao combate.

[5]E assim, representações lógicas de realidade - não confundir com a "realidade" em si mesma.

[6] Kihon, no Karaté, corresponde a um encadeamento mais ou menos simples de uma ou várias acções técnico-tácticas de combate, executadas sem oposição, permitindo a repetição específica com o objectivo da aprendizagem e da automatização cada vez mais aperfeiçoada.

[7] Kata por sua vez, é um conjunto ordenado de acções técnico-tácticas de combate, sem oposição, o que permite o seu treino solitário, e que são formalmente codificadas e encadeadas formando um conjunto identificado com um nome (Saifa, Seienchin, Sanchin, Kururunfa, Unsu, Passai, etc.), sendo verdadeiros instrumentos culturais transmitidos no seio das escolas ("estilos"), aos quais além das exigências fisiológicas, que estão inerentes "estado de espírito orientados para a realização do do", a via ou caminho (K. Tokitsu, 1979, p.89). Actualmente são também objectos de competição institucionalizada específica: prova de Katas, individual ou por equipas (três elementos), por sexos e escalões etários. Literalmente a palavra kata significa forma, molde, protótipo e, segundo K. Tokitsu (1994, p.13), foi apenas no século XX, após a introdução do Karaté na ilha central japonesa que a palavra kata foi adoptada; até aí, as sequências de acções técnico-tácticas eram conhecidas pelos seus nomes próprios sem nome genérico.

[8] Jogo de combate com diversos níveis de complexidade. A oposição aqui é o factor identificador, jogando o treinador com graus de liberdade diversos, desde o definir quem ataca e defende, o como e quando o fazem, até situações totalmente livres e assim mais próximas da realidade (competitiva ou de combate "real"). Os graus são identificados em situações específicas: Gohon-Kumité (5 ataques), Sambon-Kumité (3 ataques), Ippon-Kumité (um ataque), como combates convencionais (Yakusuku-Kumité); Jiu-Ippon-Kumité como combate semi-convencional; Jiu-Kumité como combate livre.

[9] Do Kata são retirados pequenos conjuntos de acções técnico-tácticas específicas desse Kata, e são treinados em sequência com parceiro. Possibilita o estudo interpretativo do Kata, tornando-se assim num Kumité convencional com referência a um Kata específico.

[10]Gichin Funakoshi (1868-1957) foi um dos principais percursores do Karaté moderno e a ele se deve uma das principais escolas do Karaté actual: shotokan.

[11]Claramente em oposição ao "ensaio e erro".

[12]Kimé, é uma noção complexa que segundo Habersetzer, se pode traduzir por " ´eficácia penetrante´ ou de ´cisão última´, [...] [englobando] o conjunto das acções físicas e mentais que intervêm simultaneamente na última fase do movimento, um pouco antes do impacto e mantido um pouco depois [...]", considerando-a em última análise como "a fase realmente eficaz de uma técnica". (Habersetzer, 1986, 1º vol., p. 42).