O
KARATÉ INFANTIL E O DESENVOLVIMENTO LÚDICO
Bases
Metodológicas para uma Intervenção Didáctica
Abel
Aurélio Abreu Figueiredo
1994
RESUMO
Neste
trabalho, o autor apresenta as bases metodológicas em que
assenta a sua visão do Karaté Infantil, explorando o
desenvolvimento do sentido lúdico da criança.
Palavras
Chave: Karaté Infantil, Criança, Jogo, Combate/Luta.
Os Desportos de Combate[1]
(onde não temos relutância em colocar as Artes Marciais)
tiveram origem em Culturas Medievais, ou em culturas similares.
Os seus objectivos concretos são o combate condicionado por
regras de segurança, e o factor que costuma ser considerado como
fundamental na sua classificação é o factor distância.
Desde à algum tempo que nos temos
preocupado com a significação hodierna dos Desportos de Combate
em geral, e do Karaté em particular[2].
Esta preocupação continua presente, pois
embora as actividades que implicam "luta" e oposição
corporal directa entre os intervenientes já não sejam
descriminadas dos conteúdos programáticos da Educação Física
(novos programas), poucos são os professores que os abordam nas
aulas de Educação Física.
Este afastamento deve-se, por um lado, a um
desconhecimento preciso dos conteúdos respectivos, o que
dificulta a intervenção didáctica e pedagógica, e,
especialmente, a um desconhecimento das suas imensas
potencialidades para o desenvolvimento sócio-afectivo e
perceptivo-motor da criança. Por outro lado, existe ainda a
falsa crença de que este tipo de actividades implicam um
material muito específico, o que, a nosso ver, está
intrinsecamente ligado à noção de que os desportos de combate
a abordar serão a Luta e o Judo ou eventualmente o Jogo do Pau
(os únicos constantes na proposta curricular apresentada nos
novos programas).
Cabe-nos aqui fazer uma referência especial
ao Karaté já que, fora da Escola, é cada vez mais usual a sua
prática, principalmente em escalões ectários cada vez mais
baixos. Faltando trabalhos que abordem especificamente este tema,
urge reflectir sobre o papel do Karaté infantil na
socialização da criança, procurando também esclarecer, de
certa forma, o tipo de tarefa motora inerente à prática da
modalidade, elogiando os factores positivos para a educação
psico e sócio-motora. Só a partir do esclarecimento daquele
ponto nos surge importante investigar sobre o enquadramento da
actividade pela análise da tarefa[3].
Como qualquer actividade cultural, pelo
Karaté podem-se vincular determinadas normas, valores e
símbolos, que influenciarão a maneira de pensar, sentir e agir
dos seus protagonistas.
É evidente que essa socialização tem
interesse para a Sociologia, Psicologia, Antropologia e
Etnologia, "porque ela leva à inserção na sociedade, e o
ser humano é moldado pelo meio, pelos costumes, tradições,
modelos, normas e valores do sistema socio-cultural em que
vive" (REYMOND-RYVIER, trad:
1983, p.7).
Não somos especialistas em nenhuma dessas
áreas referidas, mas, partindo do desenvolvimento lúdico
infantil, vamos procurar abordar o problema da socialização da
criança protagonizada pela prática do Karaté.
O tema central deste ensaio, sendo o Karaté
Infantil, aborda a esfera cognitiva, afectiva e socio-motora
do indivíduo em desenvolvimento durante a infância. Vamos
procurar lançar algumas pistas fundamentadoras da nossa
metodologia de ensino do Karaté infantil, clarificando
inicialmente o conceito de Homem que defendemos. A seguir,
abordando a infância, e sendo o jogo uma actividade vital deste
período (UNESCO, 1980), "condicionando o desenvolvimento
harmonioso do corpo, da inteligência e da afectividade" (p.
5), e constituindo uma das actividades educativas essenciais,
vamos procurar explorar o conceito de jogo numa perspectiva
genética (desenvolvimento), de modo a fundamentar coerentemente
a intervenção pedagógica na infância. Por fim, com base no
anterior, vamos especificar a problemática concreta do Karaté
na infância.
"Jogamos
e sabemos que jogamos. Portanto, e uma vez que o jogo é
irracional, somos mais do que seres racionais"
HUIZINGA,
J., Homo Ludens
Sem dúvida que "o presente é dominado
pela redescoberta do corpo e a humanidade parece viver obsecada
por todo um conjunto de experiências que, embora motivado por
razões de saúde, não deve fazer esquecer a sua inspiração
simbólica. [...] A história do corpo, [...] poderá contribuir
para o estabelecimento dos mecanismos que nos levam à obsessão
da prática desportiva do presente e a dar importância a todos
os signos de narcisismo e de hedonismo que parecem caracterizar
as épocas em decadência" (CRESPO, Jorge, 1990, pp.
573-574).
Não encontramos pessimismo nesta mensagem
de Jorge CRESPO, mas antes, um alerta para as consciências dos
que intervêm na educação corporal e no corpo em geral, no
sentido de que são agentes de intervenção (orientação
e gestão) e não peças passivas num fenómeno exterior que
evolui por si. A direcção dessa evolução, ensina-nos o
passado, pode depender do que fizermos hoje.
Afirmamos, pois, a anti-neutralidade da
intervenção social de que somos protagonistas enquanto
pedagogos. Como nos diz o autor já citado, os pedagogos,
juntamente com os médicos, "assumiam as responsabilidades
de concretizar as duas principais dimensões do problema: a luta
contra a precaridade do corpo e a afirmação das suas
potencialidades [...]" (ibidem, p. 570).
Presentemente, emerge uma nova Antropologia
que resulta de uma convergência (ABREU, 1990) da teoria
darwinista que ligou filogeneticamente o Homem às outras
espécies animais (Darwin), da concepção psicanalítica que
encara sintomas somáticos sem bases fisiológicas (Freud), e da
nova concepção fenomenológica da consciência intencional
(Husserl).
Trata-se, na verdade, de outro paradigma (T.
Kuhn), um paradigma em que se supera o dualismo cartesiano
marcado pela dicotomia entre o corpo, como realidade
regulada e explicada pelo determinismo mecanicista, e a mente,
consciência e espírito, regulada por processos que culminam na
vontade humana. A nova visão do Homem, como "totalidade ou
unidade integrada e integradora de componentes biológicos,
psicológicos, sócio-culturais e axiológicos numa estrutura
[...] dinâmica de interacções recíprocas" (ABREU, 1990,
p. 1169), é posta em relevo na feliz expressão de Sílvio Lima:
unidade bio-psico-sócio-axiológica.
Uma última característica que não
queremos deixar de evidenciar, é que no paradigma pós-moderno,
todo o conhecimento é auto-conhecimento, é local e total
(fragmentação temática e não disciplinar), e, ainda, todo o
conhecimento científico visa constituir-se em senso comum:
enquanto na ciência moderna o salto qualitativo é dado do senso
comum para o conhecimento científico, na ciência pós-moderna,
como nos diz Manuel SÉRGIO, parafraseando Boaventura de Sousa
Santos, "o salto mais importante é o que se dá a partir do
conhecimento científico para o senso comum, isto é, para uma
sabedoria de vida" (SÉRGIO, Manuel, 1989, p. 25).
"Uma
criança que não sabe jogar [...] será um adulto que não sabe
pensar"
CHATEAU,
J., A Criança e o Jogo
O jogo é uma actividade
universalmente vital para o desenvolvimento harmonioso do Homem.
O comportamento lúdico, presente em todas as culturas, constitui
um verdadeiro espelho social com as suas tradições e regras.
"Condicionado pelos tipos de habitat ou de subsistência,
limitado ou estimulado pelas instituições familiares,
políticas ou religiosas, funciona ele mesmo como uma verdadeira
instituição" (UNESCO, 1980, p.5).
Os estudos actuais têm evidenciado a
influência que os comportamentos e os objectos lúdicos têm
sobre o desenvolvimento da personalidade. Esta influência, como
é evidente, é modelada pelo contorno social e cultural de que
faz parte, e é esta não neutralidade que pretende ser
aproveitada pedagogicamente.
Falar de jogo infantil é falar de
actividades que encerram gratuitidade, alegria, exercício e
novidade (CHATEAU, 1967, p.15); "Jogo é, ao mesmo tempo,
uma exploração gratuita e vinculadora de alegria" (ibidem,
p.15). O jogo é busca de prazer.
Jean PIAGET refere critérios como o
carácter autotélico (fim em si mesmo) e desinteressado do jogo,
a sua espontaneidade, o prazer inerente, a falta de organização
que o caracteriza, a libertação dos conflitos que permite, e a
supramotivação (motivos acrescidos não contidos no próprio
jogo) (PIAGET, 1964, trad: 1978, pp.188-192).
No entanto, o que PIAGET realça de todos
estes critérios é que "o jogo distingue uma modificação,
de grau variável, das relações de equilíbrio entre o real e o
eu. Pode-se portanto sustentar que se a actividade e o pensamento
adaptados constituem um equilíbrio entre a assimilação e a
acomodação, o jogo começa desde que a primeira leva vantagem
sobre a segunda. Da assimilação puramente funcional que
caracteriza o jogo de exercício até às diversas formas de
assimilação do real ao pensamento que se manifesta no jogo
simbólico, o critério parece bem geral." (ibidem,
p.192).
A abordagem Piagetiana encara o jogo como
resultado de um desequilíbrio na função da adaptação. Uma
categoria da actividade é a imitação que surge como
acomodação quase pura, ou seja, restruturação dos esquemas
inoperantes face ao entendimento do mundo; a outra categoria é o
jogo que surge com a predominância da assimilação, onde
se faz a recepção activa do mundo através dos esquemas actuais
operantes.
Há, no entanto, que clarificar que "se
o jogo fosse pura assimilação, não levaria em consideração
as características dos objectos. Mas no jogo [...] as
necessidades de adaptação estão sempre presentes, havendo um
grande esforço, por parte do sujeito, de acomodação aos
objectos, isto é, de se ajustar às características dos
elementos com os quais ele se relaciona." (FREIRE, 1989, p.
119).
A noção é a de predominância da assimilação,
e ela, diz-nos Jean PIAGET, está presente nos três grandes
tipos de estruturas que caracterizam os jogos infantis: o
exercício, o símbolo e a regra, que dão os jogos de
exercício, os jogos simbólicos e os jogos com regras (1964,
trad:1978, pp. 144-149).
O jogo de exercício circunscreve-se
à conduta lúdica, a busca de prazer, na acção corporal. Não
sendo exclusiva deste ou daquele período ontogenético é mais
evidente no período sensório-motor. Nesta categoria de jogo a
finalidade é "o próprio prazer do funcionamento" (ibidem,
p. 144).
No jogo simbólico pode-se
fazer-de-conta aquilo que na realidade não é, não foi, ou não
será possível. Aqui, ultrapassam-se os limites funcionais do
primeiro tipo de jogos.
A terceira categoria, o jogo de regras,
pressupõe uma vida relacional mais complexa. A regra, como
"regularidade imposta pelo grupo", caracteriza as
relações sociais, os jogos verdadeiramente interindividuais.
Claro fica, na obra do psicólogo de
Genebra, que a aquisição de um novo tipo de jogo não exclui as
anteriores. Há restruturações e não meras substituições.
Mas onde se encontram as origens deste tipo
de actividades? Jean CHATEAU (1961) refere-nos quatro tipos de
fontes: a invenção, a imitação, a tradição e os próprios
instintos (p. 112). No entanto, alerta para que elas concorrem
concomitantemente e não de forma independente.
A fonte instintiva predomina nos primórdios
da existência. CABRAL (1990) afirma que "o homem vem ao
mundo com um impulso lúdico que lhe permite repetir uma
acção a que acha graça, tentando vencer as resistências que
esse objectivo lhe depara", referindo ainda que esse impulso
para a acção e para o conhecimento, "não é conhecimento
em si" (p. 174, sublinhados nossos).
Tal impulso realiza-se através de dois
meios: a mimese (imitação) e o agon
(competição). Se a imitação é considerada como
"elemento conservador", a competição "visa
sempre dialecticamente algo de novo" (ibidem, p.
194).
O mundo do recém-nascido é um mundo
caótico onde não se distingue o subjectivo do objectivo. Do
primeiro ao vigésimo mês vai-se construindo um universo
estável "em que os objectos [...], dotados de permanência,
são distintos e independentes dele", ao mesmo tempo que,
paulatinamente, se vai processando a construção do Ego
(REYMOND-RIVIER, trad: 1983, p.23) com base essencial na díade
mãe-filho.
O jogo infantil começa com uma
dissociação adaptativa. "Após haver aprendido a agarrar,
a balançar, a lançar, etc., o que comportava, ao mesmo tempo,
um esforço de acomodação a situações novas e um esforço de
repetição, reconhecimento e generalização, que constituem os
elementos da assimilação, produz-se mais cedo ou mais tarde (e,
muitas vezes, mesmo durante o período de aprendizagem) o facto
de a criança agarrar pelo prazer de agarrar, balançar pelo
prazer de conseguir balançar, etc., ou seja, em resumo, repete
as suas condutas sem novo esforço de aprendizagem ou de
descoberta, mas pela simples alegria de dominá-las, de dar em
espectáculo a sua própria potência e de a ela submeter o
universo [...]: o jogo de exercício constitui-se desde
então." (PIAGET, 1964, trad: 1978, p.208).
O "puro exercício", desde cedo
patente na actividade infantil, é a "procura do prazer
vindo de uma exercitação". Só mais tarde, "com o
prazer do novo, o jogo se pode separar de outras actividades
hedónicas" (CHATEAU, 1967, p.16).
Embora, na essência da actividade lúdica
da etapa anterior (até aos dois anos), estejam, juntamente com
os elementos "conflitivos", os elementos miméticos
(CABRAL, 1990, p. 174), os jogos de imitação aparecem a partir
do segundo ano, sendo seus favoritos até aos quatro anos,
simultaneamente com os jogos de construção (CHATEAU, 1961, pp.
159-160). Marcam um início de descentração, com o conhecimento
simbólico, onde o objecto e a acção já são interiorizados,
mas ainda "sem a reversibilidade mental, sem a perspectiva
do outro" (CABRAL, 1990, p. 174).
Para as experiências descentradas concorrem
a maturação somática e as funções cognitivas e afectivas. No
terceiro trimestre do segundo ano há uma nova compreensão do
real pela restruturação do universo próximo (REYMOND-RIVIER,
trad: 1983, p.62).
Por volta dos 3 anos, a criança começa a
deixar a exclusividade do sensível e afectivo para incluir
também o representativo. Vai, assim, começando a orientar a sua
exploração para o objecto, com um jogo em que já o distingue
do sujeito, permitindo então um outro tipo de explorações.
De qualquer forma, estas explorações
continuam sempre fautoras de "conhecimento implícito e
subjectivo" e não "explícito e objectivo" como o
conhecimento científico (CHATEAU, 1967, p.18). O jogo infantil,
após os 3 anos, é, "acima de tudo, exploração de
si"; jogar é ensaiar as suas prestações, é querer
crescer, ser mais, ser maior (ibidem, p.18). Jean CHATEAU
apresenta os jogos exploratórios, os jogos de imitação e os
jogos tradicionais com a mesma componente essencial: o
comportamento subjectivo e não o objecto (ibidem, p.34).
Assim, se no início a criança é
egocêntrica, à medida que vai percebendo a distância entre ela
e os adultos, os mais velhos, a Mãe, o Pai, etc., vai
desenvolvendo o "querer ser adulto", jogando:
actividade onde tem liberdade para imitar (ser) adulto.
A aquisição do "não", como
verificou SPITZ (em REYMOND-RIVIER, trad: 1983, p. 63), marcava,
no fim do segundo ano, um começo de autonomia. Aos três anos,
consciente de si como pessoa, afirma-se como "eu", que
passa a fazer parte da sua linguagem, e é um verdadeiro
indicador do social vivido.
Esta auto-consciência é acompanhada de um
autêntico isolamento em relação às outras crianças. Quando
juntas, cada uma está absorvida no seu próprio jogo, parecendo
ignorar a presença dos companheiros. As acções comuns são
esporádicas e "comandadas pelo material (por exemplo puxar
e empurrar um carro), ou suscitadas por uma criança que se
impõe durante alguns instantes e de quem os companheiros
unicamente imitam os gestos [...]" (REYMOND-RIVIER, trad:
1983, p. 74). O companheiro procurado é, sem dúvida, o adulto.
São as colisões e os conflitos que vão
quebrar o relativo isolamento em que vive a criança, levando-as
a tomar consciência da personalidade das outras. Momento
importantíssimo para o começo do grupo, a partir dos quatro ou
cinco anos, as pequenas unidades sociais que se vão
constituindo, segundo observações de S. Isaacs (em REYMOND-RIVIER,
trad: 1983, p. 78), são motivadas pela hostilidade contra uma
terceira criança. É deste tipo de partilha que surge a simpatia
mútua que leva, posteriormente, à cooperação.
As situações triangulares, como fonte de
rivalidade e de disputa, levam à criação de grupos duais
efémeros e só o adulto consegue manter a frágil coesão entre
eles.
O fascínio pelo adulto vai diminuindo,
voltando-se cada vez mais para os seus semelhantes. A partir dos
cinco ou dos seis anos o adulto serve para resolver os conflitos,
mas não para brincar com elas (ibidem, p. 75).
No entanto, o "fazer em conjunto"
está contaminado de um egocentrismo grande. Quando jogam, as
crianças de cinco ou seis anos não se preocupam em uniformizar
as regras; não conseguem esperar pela sua vez; a finalidade do
jogo não é social já que só o prazer individual conta, prazer
essencialmente motor: "a criança brinca, individualmente,
com uma matéria social" (PIAGET, trad: 1978, p. 121), pelo
que não se importa em ganhar, já que ganhar implica a
existência do "outro".
Paradoxalmente, a criança considera a regra
como sagrada e intocável, tendo sido inventada pelos "mais
velhos". O problema está na sua aplicação comum. Como já
dissemos, só a intervenção do adulto, mais velho, mantém a
ordem no grupo.
Só aos sete ou oito anos é que começa a
libertação mais evidente do egocentrismo pelo desenvolvimento
do pensamento lógico, o que vai imprimir uma nova estrutura às
relações interpessoais. Embora ainda sem a abstracção
formalizante do pensamento formal, a adquirir por volta dos onze
ou doze anos, existe um pensamento concreto, com interiorização
da acção já percebida da qualidade de reversibilidade (CABRAL,
1990, p. 174). O "outro" é perfeitamente
conciencializado.
Entre os sete e os nove anos, as
investigações põem em evidência que, "o prestígio da
força e agilidade físicas é sobrestimado [...] em relação ao
espírito de camaradagem e de solidariedade", dando-se o
contrário aos dez anos: quem infringe as regras de camaradagem
é excluido do grupo (REYMOND-RIVIER, trad: 1983, p. 102).
No jogo, o pequeno dos sete aos nove anos,
tem um excessivo regogizar com os acontecimentos, havendo
exaltação, mesmo em jogos solitários. Excitam-se até aos
limites da actividade (CHATEAU, 1961, trad:1975, pp. 102-103). É
o auge dos jogos de proeza que, juntamente com os jogos de
imitação, vão dar origem aos jogos tradicionais de
competição cooperativa.
A cooperação só se consolida
perfeitamente pelos dez anos, o fim da infância, onde a aplicação
da regra é sagrada, sendo mesmo eles, enquanto grupo, que
constroiem e adaptam, em conjunto, as suas regras. Para as
crianças anteriores existia heteronomia nas regras, já que elas
eram exteriores à sua consciência. A libertação dessa
moralidade heterónoma advém da substituição da autoridade
distante e difusa dos "mais velhos" por uma autoridade
livremente escolhida, em grupo, procurando novos caminhos fora
das regras anteriores: prepara-se a adolescência.
De uma anarquia grupal, aos seis anos,
passa-se por um período de ditadura entre os sete e os nove
anos, para se iniciar um regime mais democrático a partir dos
dez anos.[AF1]
Ali, é apenas o valor dos mais velhos que vai sendo respeitado,
aceitando as suas regras, tornando-se mesmo dos mais
conservadores dessas regras (moralidade heterónoma); aqui, a
regra perde o seu carácter monolítico anterior, pois a criança
tem capacidade para perceber o seu espírito, seguindo as regras
porque o querem (moralidade autónoma).
É na estrutura de grupo que se acentuam
dissemelhanças entre os rapazes e as raparigas. Se em termos
gerais a evolução é idêntica (do egocentrismo à cooperação
e à reciprocidade, da heteronomia à autonomia), a coesão dos
grupos de rapazes contrasta com a falta de unidade nos grupos de
raparigas. Nestes, não existe, normalmente, uma grande
"estrela", mas sim várias "estrelas"
pequenas que não dando a coesão, unidade e centralização dos
grupos masculinos, repartem o grupo virtual em pequenos
sub-grupos. (REYMOND-RIVIER, trad: 1983, pp. 112-113).
Todo este percurso ontogenético, evoca-nos
Jean CHATEAU (1961, trad: 1975), tem, intrinsecamente, o elogio
da afirmação do indivíduo. Na adolescência, continua
bem patente a afirmação do "eu" que o jogo da
criança revela. Também ali está o apelo ao mais velho (os seus
modelos, heróis, os santos, os grandes homens), ao encontrar a
figura ideal do mais velho, sendo a procura de independência
feita segundo um modelo estranho.
Na infância, pelo jogo, treinam-se todas as
estruturas envolvidas na vida adulta, passando do funcional
prazer sensorial ao autónomo prazer do seu próprio acto
(CHATEAU, 1961, trad:1975, p. 22). Este autor define ainda que o
jogo "desempenha, portanto, para a criança, o papel que o
trabalho desempenha para o adulto" (ibidem, p.38), ou
seja, a afirmação, a acção com marca própria, autónoma,
são questões comuns entre a vida na infância e na fase adulta[4].
Também LAPIERRE e AUCOUTURIER, cita-nos
Manuel SÉRGIO (1987, p. 98), evidenciam a importância decisiva
do primeiro acto consciente (o agarrar um objecto, por exemplo)
que representa a "inequívoca manifestação de alguém que
se afirma como sujeito", apontando que é aqui que reside a
"origem do jogo que é investimento na acção".
No entanto, Jean CHATEAU elucida uma
diferença importante: a prova de afirmação do
"eu" que a criança procura, raramente ultrapassa a
acção em curso, o que não acontece com o adulto. Para aquela,
"a prova não vale senão naquele momento, sendo necessário
racomeçá-la de novo, fazer outra [...]" (CHATEAU, 1961,
trad:1975, pp. 37-38).
No entanto, à medida que a criança se vai
desenvolvendo, a dimensão simbólica vai permitindo a
integração dos objectivos motores em intencionalidades cada vez
mais complexas porque cada vez mais centrífugas.
Parece certo que tanto na criança como no
adulto "o ser espectador não pode prevalecer como categoria
fundamental da vida. De facto, viver radica num comportamento que
surge sempre como resposta decisiva a cada uma das situações em
que o homem se encontra. Viver é praticar" (SÈRGIO,
1987, p.98). A importância que a prática do jogo adquire na
vida da criança deve-se ao facto de, "também ela, não
imitar unicamente, mas amar engolfar-se no exercício da
liberdade", sendo uma autêntica "alegria do
novo", "procura do novo" (ibidem, passim).
Esse exercício não é apenas consequência mas também
fenómeno fautor de liberdade.
Na verdade, Arnold GEHLEN caracterizava o
Homem como um ser práxico, o que, diz-nos Manuel SÉRGIO,
é o mesmo que dizer que é um ser transformador (1987, p.
167).
Por detrás deste sentido transformador,
também Jean CHATEAU frizava a intencionalidade e a consciência
(1961, trad:1975, pp. 38 e 39), que estão presentes no
constructo de Maurice MERLEAU-PONTY: motricidade é intencionalidade
operante.
"Em psicologia do conhecimento, toda a
obra de H. Wallon e a de J. Piaget tendem a evidenciar o papel da
actividade corporal, no desenvolvimento das funções cognitivas.
Mas foi sobretudo a fenomenologia da percepção a insistir,
depois de Maurice Merleau-Ponty, no facto indiscutível de o
corpo ser a referência permanente, como princípio biológico de
referência ao mundo." (MAIGRE e DESTROOPER, 1975, em M.
SÉRGIO, 1987, p. 86).[AF2]
Vê-se, pois, uma valorização que vai no
sentido de "atenuar o peso da herança da concepção
fisicista e mecanicista do corpo e da matéria que o sistema
filosófico cartesiano instaurou no alvor do pensamento
moderno" (ABREU, Viegas, 1990, p. 1168).
Se é perfeitamente fundamentada a tese
sobre a origem da inteligência a partir da actividade
psicomotora da criança, ela assenta perfeitamente numa outra
Antropologia, a que nos referimos inicialmente. O corpo deixa de
ser um instrumento do "eu", para passar a ser encarado
como o verdadeiro "eu" em trancendência em função da
própria vivência actual rumo ao virtual.
Sem dúvida que a relação estreita com o
meio envolvente emerge quando se estuda o desenvolvimento
infantil. O jogo não pode acontecer em qualquer lugar, em
qualquer momento, nem de qualquer maneira. Existe uma área
lúdica que integra várias componentes: o espaço
limitado pelas dimensões e pelo conteúdo, o próprio indivíduo,
com as suas necessidades, aspirações e motivações, as
próprias pressões exteriores, e a adaptabilidade
às modificações (UNESCO, 1980, p. 11).
A socialização diz respeito à
aprendizagem das normas, valores e símbolos sociais, à sua
integração e adopção pessoal. Isto pressupõe, como é
óbvio, a existência de um indivíduo e de um meio socializador.
O processo de socialização, dada a
nova antropologia, não se caracteriza tanto pelo constrangimento
com que decorre. Preocupa-se mais em integrar, numa perspectiva
genética (estruturação, desestruturação, restruturação) a interacção
social, onde se tem em conta a recepção activa do
"outro" (mundo) através dos esquemas actuais
(assimilação), e a restruturação dos esquemas sob influência
da sua inoperância face ao entendimento do mundo (acomodação);
as normas que possibilitam as relações interpessoais,
dando-lhes um significado, uma coerência e uma previsibilidade;
os valores, como ideais de pensar, sentir e agir que
orientam a conduta; os símbolos que referenciam os
códigos de comunicação e participação social; e as sanções
e recompensas que vão condicionando a regulação das
condutas.
O processo de socialização, mais do que
imposto, deve ser estimulante. O sujeito em desenvolvimento deve
ser estimulado a utilizar e a desenvolver as normas, os valores e
os símbolos, como verdadeiros recursos de convívio.[AF3]
Torna-se evidente a anti-neutralidade do
processo de socialização, pelo que existe uma função lúdica
que tentaremos perceber a seguir.
Para melhor clarificar a função lúdica,
consideramos vantajoso fazer uma análise ludencial cujo código
foi definido por CABRAL (1990, p.22). Veja-se a seguinte figura.
Realça-se que a actividade remete para o
prazer e vice-verça: "quando se acha prazer em determinada
actividade e esta se repete, pelo prazer, nasce o jogo. Se este
continua a ser fonte de prazer, volta a repetir-se, o que, entre
o mais, dá origem ao desenvolvimento e ao
aperfeiçoamento." (CABRAL, 1990, p. 22).
Assim, o jogo que é a função da
interacção da actividade interessante e do prazer, consolida-se
com a repetição da actividade que, fonte de prazer lúdico,
impulsiona novamente a sua repetição.
Depois de apresentar o código ludencial,
CABRAL conclui que o jogo tem um projecto: o prazer de ganhar.
Sendo certo que em algumas culturas os jogos
de competição[5] possam não ser muito
usuais, "jogando para divertir-se e não para ganhar",
como é o caso dos jogos Lao (UNESCO, 1980, p. 6, nota 5 e p.
29), o prazer lúdico está sempre subjacente no jogo.
Dá-se uma outra qualidade à gratuitidade
deste tipo de actividades, assim como ao seu carácter
autotélico: o jogo é mediador de prazer lúdico. O "fim em
si mesmo" da actividade deve ser aprofundado com este olhar
à motivação lúdica, deixando a superficialidade anterior[6].
Como já vimos, e como é referido por
muitos autores, "as características particulares de um jogo
são essencialmente determinadas pelas suas regras, regras essas
que criam um outro mundo desligado da realidade." (EIGEN e
WINKLER, trad: 1989, p. 42-43).
É esta característica de desligar
conscientemente da realidade que é explorada pela criança com
os seus jogos de "faz-de-conta". Se do ponto de vista
exterior o jogo infantil de "faz-de-conta" é uma
abstracção da realidade, do ponto de vista da criança, sujeito
que joga, esse "faz-de-conta" é sério.
A seriedade nos jogos é algo que se observa
facilmente em todas as crianças. Esta ilusão é provocada pela
ruptura que o jogo opera no mundo, mas não deixa de ser um
projecto para a virtual realização concreta, conquistando-se
"a autonomia, a personalidade, e até os esquemas práticos
de que a actividade adulta terá necessidade." (CHATEAU,
1961, trad: 1975, p. 29).
O jogo encerra, pois, características
biplaneares. Baseando-se em LOTMAN, CABRAL explicita que o
comportamento do jogador tem como suporte a sua consciência do
carácter convencional e desligado da realidade da situação de
jogo, mas também uma certa falta de consciência disso mesmo. É
claro que um desvio do comportamento biplanear para um
monoplanear de um ou outro sentido destroi a especificidade do
jogo.
Em jogo, "[...] o real sofre uma
duplicação pelos jogadores que, assumindo a sua imagem (dele,
real) pelo prazer de a assumir, tomam por esse facto a
conciência lúdica que conduz ao comportamento biplanear"
(CABRAL, 1990, p. 35). No jogo, as crianças, conscientes da
distanciação, não se transformam verdadeiramente em
"polícias e ladrões", continuam a ser crianças;
todavia, sentem-se (transfiguram-se) "polícias e
ladrões".
CABRAL, retomando a identificação do
lúdico com o sagrado de HUIZINGA, ao aspecto agonístico
refere-se como "aspecto exaltante do profano", e à
consciência da distanciação, chama "o aspecto sensível
do sagrado" (ibidem, p. 74).
Antes de terminarmos a exploração do
conceito de jogo, vamos abordar, porque encontramos importante
para o gestor de jogos (o pedagogo), a relação entre as regras
e o acaso.
Como vimos, à medida que a criança vai
tendo capacidade para perceber o espírito da regra, a
heteronomia das regras vai sendo largada a favor da sua
autonomia.
Existe, na criança, um amor pela regra,
onde encontra "o mais seguro instrumento da sua
afirmação", manifestando "a permanência do seu ser,
da sua vontade, da sua autonomia" (CHATEAU, 1961, trad:1975,
p.92)
Mas não são apenas as regras que são os
elementos do jogo, também o acaso o é. "[...] A atracção
do jogo resulta apenas da combinação do acaso e das
regras" (EIGEN e WINKLER, trad: 1989, p. 42). O mistério, o
imprevisível são categorias motivadoras para o jogo.
A previsibilidade de um acontecimento
depende do conhecimento rigoroso das condições iniciais, das
condições de fronteira e da lei de comportamento do
acontecimento. Na análise do movimento dos planetas, por
exemplo, conhecendo as condições iniciais (posições), as
condições de fronteira (relações) e as leis estritas de
deslocamento, podem-se prever as trajectórias futuras. Já no
jogo de dados, é difícil determinar as condições iniciais, e
existe uma regra que obriga a abanar o copo dos dados, antes do
lançamento, para dificultar precisamente aquela previsibilidade.
Por outro lado, no deslocamento planetário,
pequenas perturbações não originam catástrofes (órbitas
estáveis), ao passo que, nos dados, as órbitas são mais
instáveis já que contêm muitas bifurcações e um pequeno
desvio origina um novo futuro.
Assim, se para um sistema estável a
precisão de cálculo pode ser menor, num sistema instável
a precisão tem que ser grande, já que há maior sensibilidade a
perturbações microscópicas que se reflectem, por acumulação,
no plano macroscópico.
Nos jogos de comportamento, dependentes da
decisão humana, a previsibilidade dependerá do tipo de decisão
autorizada pelas regras que reduzem a complexidade da actividade[7].
Mas atenção: "um jogo que apenas se
baseie no acaso é tão aborrecido como outro que, em virtude do
reduzido número de possibilidades de variação, decorre de uma
forma absolutamente determinista" (EIGEN e WINKLER, trad:
1989, p.33). Tem que existir um equilíbrio entre as
possibilidades das decisões intuitivas e as possibilidades da
análise estratégica.
"se
todo o desporto correctamente vivido é jogo, nem todo o jogo é
desporto"
CABRAL,
António, Teoria do Jogo.
O Karaté, como fenómeno autonomamente
organizado, é uma actividade do século XX, mas o seu processo
de génese remonta a muitos séculos atrás.
Tal como em alguns outros Desportos de
Combate ou "artes marciais", existe ainda um certo
discurso que pretende antagonizar a perspectiva imposta pelo jogo
desportivo com a perspectiva dada pela prática marcial destas
disciplinas.
Se, inicialmente, a perspectiva competitiva
institucionalizada não estava dentro das expectativas dos
mestres percursores do Karaté moderno, os praticantes
universitários de Karaté na Ilha principal do Japão, os alunos
de G. Funakoshi (1869-1957), com relevância para Hironori
Ohtsuka (1892-1982), e os alunos de C. Miyagi (1887-1953), Kenwa
Mabuni (1889-1952) levam a que em 1962 se forme a JKF (Japan
Karate Federation) e em 1965 se realizem os primeiros campeonatos
japoneses de Karaté entre vários estilos/escolas[8].
Este movimento inovador, desde logo teve
opositores a afirmar que as regras impostas deformavam os
princípios tradicionais do Karaté como arte marcial e, ainda
hoje, há Karatecas que se opõem à participação competitiva
no Kumité[9] (combate), tal
como se encontra regulamentado pelas regras da FMK (ex: WUKO)[10].
Não pomos em dúvida que o fenómeno
competitivo, principalmente devido à regra do controlo dos
impactos, modificou formalmente a actividade a vários níveis[11], e não procuramos discutí-los aqui.
Interessa-nos, isso sim, perceber a estrutura do jogo de combate
de Karaté.
Mas antes, vamos clarificar o fenómeno
competitivo com algumas notas.
LOUKA (1990) tenda despir o reducionismo
competitivo que aponta como causa de despromoção da modalidade.
Na verdade, a direcção que se impõe ao fenómeno competitivo
é o ponto crucial de toda esta questão.
Na actualidade desportiva do Karaté, só
cerca de 5% dos Karatecas participam em competições
institucionalizadas (LOUKA, 1990, p.10)[12].
Além disso temos, neste fenómeno
desportivo, mais competidores assentados do que espectadores,
existindo um constante fenómeno de "turn over" de
praticantes nos ginásios de prática da modalidade[13], tendo abatido as taxas de crescimento das
licenças, realçando-se que, actualmente, e continuamos a
reportarmo-nos a dados de França, 50% dos licenciados são
crianças. Não existe propriamente rejuvenescimento, já que a
proporção de adultos não se mantém, mas há uma
"infantilização", ou seja uma baixa da taxa de
crescimento dos adultos em relação às crianças (ibidem,
p. 13).
Assim, se por um lado a operância
individual em jogo é posta em causa pelo atirar para as bancadas
a maioria, por outro lado, a competição e as regras desportivas
parecem não ser, actualmente, o suporte motivacional da maioria
dos praticantes.
Depois de apontar como problemas a resolver,
uma política eficaz de promoção do Karaté e uma política
eficaz de formação de quadros, LOUKA sublinha os valores
éticos da arte marcial, que, quanto a ele, são os motivadores
da grande maioria dos praticantes e público sensível às
"noções fundamentais de respeito, de rigor, de mestria, de
coragem [...]" (ibidem, p. 15).
Antes de tudo, o Karaté infantil deve ser
encarado como uma actividade lúdica, ou seja, uma actividade
cujo fim se orienta para o prazer (CABRAL, 1990, p. 194). A
repetição da actividade em função do prazer advém, como
vimos, da vitória. Esta é entendida como actividade bem
sucedida na repetição que gera o prazer lúdico (ibidem,
p. 32) e, como veremos mais à frente, pode ultrapassar o simples
ganhar formal do combate competitivo, no sentido de se alargar à
actividade em geral.
No entanto, a competição, nestes escalões
ectários, existe sempre, mesmo sem a orientação do adulto, já
que "o carácter agonístico é também inerente à acção
lúdica, mesmo à infantil", e, sendo a expressão da
procura da novidade, "é necessário reconhecer a sua
importância, mesmo pedagógica" (CABRAL, 1990, p. 194).
Simultaneamente temos o carácter mimético, mais conservador,
que também deve ser tomado em consideração, principalmente no
que respeita à ética que envolve este tipo de actividades.
A grande diferença, quando em competições
formalizadas, não está na utilização de regras, mas sim na
utilização da estandartização e codificação dessas regras
numa perspectiva que se afasta dos valores desenvolvimentistas,
para se aproximar de valores tecnocráticos preocupados com os
índices de participação competitiva, a moeda de troca para os
subsídios estatais. É esta desvirtualização, este desvio, que
interessa conhecer, para não entrar em antagonismos formais.
Quando entramos no domínio da
formalização e codificação institucional do jogo, passamos ao
domínio puro do desporto. O desporto encerra, portanto, a
dimensão lúdica que, não neutra, pode conter as normas, os
valores e os símbolos mais diversos.
Devemos promover uma competição formal de
qualidade, para que possa ser encarada como um verdadeiro teste
pessoal. A "ética" e a "competição" serão
perfeitamente compatíveis quando não se toma esta como o fim em
si mesma. Perder a qualidade na promoção de fraudes
competitivas, desmoraliza os praticantes e desacredita a
modalidade na opinião pública.
O ganhar, antes dos sete anos, não é fonte
explícita de prazer. O jogo por jogo é-o. A subjectividade
egocêntrica supera o prazer de ganhar ao "outro".
A actividade em si não se resume ao
"ganhar". A vontade de ir à aula, de fazer a aula, de
se equipar para a aula (o kimono), de participar nos jogos
prescritos na aula, de executar os ataques e as defesas nos
combates com os outros (todo o esquema psicomotor dessas
acções), de se relacionar com o adulto da aula, etc., tudo
implica uma articulação do sistema inconsciente com o
consciente, que pode ser fonte de prazer, e que impele à sua
repetição, fazendo com que todas estas acções se incluam no
próprio jogo. O combate alarga-se à actividade geral.
Mas depois dos sete anos, o ganhar é mais
uma fonte de prazer. A frustação do perder pode ser, em alguns
casos, motivadora da repetição da actividade tanto mais
empenhada quanto mais frustrada; mas em outros, poderá levar à
desistência. "Não é fácil, é mesmo muito difícil,
estudar a perspectiva genética e motivacional do jogo
[...]" (CABRAL, 1990, p. 30).
O jogo de combate no Karaté, é um jogo de
informação incompleta e sem estratégia óptima, de duas
pessoas, e, dependendo dos casos, pode ser finito (termina ao fim
de um número finito de jogadas) e de soma zero (se um ganha, o
outro perde).
Uma das suas características é que, por um
lado, toda a responsabilidade de interpretação do jogo é
individual; por outro lado, a situação é aberta, isto é, não
depende apenas da própria intervenção, mas de todo um diálogo
corporal com o "outro". Permite, assim, uma
canalização centrífuga da atenção da criança, rumo ao
"outro", sem apelar de forma demasiado complexa à
cooperação. É um autêntico comportamento de sociabilização
adequado à segunda infância e uma introdução aos
comportamentos cooperativos próprios do período seguinte.
Outra importante característica do jogo de
combate, como vimos ao nos referirmos ao carácter biplanear dos
jogos, é a de que é interpretado, pelas crianças, como um
faz-de-conta da luta real. Esta actividade, fulcro de expressões
emocionais as mais diversas, na vez de recalcadas, devem ser
trabalhadas objectivamente. O lidar com uma situação em que a
"agressão" do "outro" é trabalhada
ludicamente, permite a vivência próxima de problemas
sócio-afectivos diversos, como o da agressividade.
Como refere CABRAL (1990, p. 76), "o
impulso lúdico visa o antagonismo [...]" e, tal como não
há jogo sem afirmação de si, não há, efectivamente, jogo sem
um princípio de agon, sem antagonismo, sem aspiração à
autoridade, à superioridade. E se um dos culmínios
contraditórios da autoafirmação é a autodestruição, outro
será a heterodestruição. O impulso lúdico, que leva à
actividade e, do acto ao pensamento, permite o desenvolvimento
individual, vai sendo motor da autoafirmação em actividades
diversas.
A socialização desta componente
autoafirmativa é feita à custa da autonomia e liberdade de
luta, gerida numa perspectiva ludencial, simultaneamente com a
introdução do conteúdo ético protagonizado pelo respeito pelo
"outro". Em perfeita coerência com a promoção de
valores sociais actuais, este conteúdo ético deve ser
explicitamente trabalhado em todas as situações de jogo dual,
sociabilizando, nesse sentido, o impulso lúdico.
A regra que consideramos como a mais
importante[14] do jogo de combate
no Karaté é a regra do controlo dos impactos transmitidos ao
"adversário" que é, na verdade, o companheiro de
jogo. O jogo baseia-se na aproximação ou no toque com as
superfícies de impacto virtual, que regulamentarmente são os
pés e as mãos, o que é diferente da realidade luta cujo
objectivo é o impacto.
Para a criança, não se deve tratar de
"bater" mas sim de tocar no seu companheiro de
jogo, e existe explicitamente a diferença entre a realidade
bater e a realidade tocar; é evidente o carácter biplanear já
que esta realidade pode ser assumida simbolicamente como aquela.
Quando combatem, são adversários, e a vitória,
agonisticamente, pode simbolizar a morte do adversário[15], representando, pois, esse papel, e a competição
só existe enquanto o fazem; por outro lado, estão conscientes
que representam um papel e de que não são o papel representado,
não são adversários reais.
Mas não somos apologistas exclusivos das
situações de "toque". Na verdade, as situações de
equilíbrio e desequilíbrio, e as situações de imobilização
servem para estimular e consolidar as estruturas responsáveis
pelo tratamento energético, mecânico, informacional,
psicológico e social da situação de luta numa globalidade
possível.
Os jogos de toque fundamentam os impactos;
os de equilíbrio/desequilíbrio fundamentam as projecções e as
respectivas quedas; os de imobilização fundamentam as
imobilizações e preparam as chaves e os estrangulamentos.
A área lúdica do jogo combate, em termos
ludenciais simples, integra, pois, o próprio indivíduo, numa
dinâmica afectiva, intelectual e volitiva, e,
circunstancialmente, envolve um oponente, o adversário, e todo o
espaço limitado por determinadas dimensões e conteúdos como as
regras.
A partir daqui, desenvolve-se toda a
estrutura do jogo. Manipulando as regras teremos uma distância
característica entre os jogadores. Devido a esta distância, a leitura
da situação é predominantemente visual ou táctil e
quinestésica, trabalhando a atenção e concentração na sua
movimentação face à do seu adversário, que lhe tenta tocar e
evita ser tocado, que o tenta desequilibrar e evita ser
desequilibrado, que o tenta imobilizar e evita ser imobilizado. A
manipulação activa e intencional da distância através da
movimentação própria, através da pega e do contacto corporal
marca o ritmo do jogo.
Numa vertente mais especializada, podem vir
a interessar predominantemente as situações de
"toque" características do combate competitivo
institucionalizado no Karaté.
Temos, pois, as três dimensões que
caracterizam este tipo de Desportos de Combate.
Ma pretende
exprimir "distância", quer no sentido espacial como
temporal, e o verbo ai "exprime um reencontro entre
duas pessoas ou objectos" (TOKITSU, 1979, p, 65). Assim,
diz-nos este autor, Maai exprimirá um "[...]
movimento de aproximação e afastamento entre pessoas ou
objectos" (ibidem, p. 66), movimento entendido num
sentido espaço-temporal, pelo que podemos entender, desde já, a
intrínseca relação com a noção de Hyoshi, ao integrar
dois tipos de movimentos: um em relação a si-mesmo, e outro em
relação ao adversário. Se Maai tem a ver com a
distância espaço-temporal relativa (eu-eu / eu-outro), Hyoshi
tem a ver com o estado de modificações sucessivas que o Maai
vai tendo no desenrolar do jogo de combate dual.
Quando ambos os ritmos (Hyoshi) ou
cadências estão concordantes, não há iniciativa explícita
que frutifique em ataque eficaz, já que os movimentos dos
protagonistas completam-se e evitam-se tal como se estivessem
parados. Só quando se toma a iniciativa de criar um ritmo
discordante, é que, ao se criar "desarmonia", se torna
possível o jogo, a vitória e a derrota.
Yomi, tradicionalmente e no Japão,
refere-se à "arte de adivinhar e de prever o adversário
[...] e compreende igualmente a arte de adivinhar e de prever as
ideias, os pensamentos, as vontades e os desejos" (ibidem,
p. 97 e 98). Para nós, Yomi tem a ver com a capacidade de
ler a situação, e especificamente, de ler as distâncias já
referidas, e os ritmos da sua modificação, numa relação que
ultrapassa a simplicidade de abordagem. Para sermos rigorosos,
devemos subentender que, nestas dimensões, estão subjacentes
estruturas biopsicossociais bem complexas. E se isto é inerente
ao jogo dual de combate, deve ser solicitado em exercícios
específicos durante as aulas de Karaté.
A título pré-conclusivo, e numa primeira
abordagem, evidencie-se que a motivação para a repetição da
actividade envolve um conjunto lato de relações entre o sujeito
e a actividade. Não é só no jogo de combate que reside o foco
motivacional para a prática de Karaté. Ultrapassa-se a simples
actividade combate para integrar todo um conjunto de influências
paralelas ao jogo de combate: é a actividade Karaté no sentido
lato.
Mas a intervenção pedagógica,
instrumentalizada centralmente no desenvolvimento do indivíduo
pela prática do combate inerme de Karaté, tem que ser coerente
com a nova antropologia, com a ontogénese do jogo, com o código
ludencial.
Antes de tudo, o prazer lúdico deve ser
componente predominante nos exercícios a propor. A aula deve
promover um ambiente de autonomia e liberdade. Por outro lado, a
implementação dos valores de respeito pelo outro deve ser
promovida pela manipulação das recompensas afectivas, e outras,
que incentivem o controlo técnico do toque no parceiro.
Quanto às bases de raciocínio didáctico
por que optamos, assentam no raciocínio dedutivo. A técnica
emerge da manipulação das dimensões referidas.
Em termos gerais, a exploração
estratégico-motora em jogo de combate parte de determinados
conteúdos individuais dos protagonistas. A leitura da situação
vai-se acentuando no essencial, por largar o acessório, o
indivíduo vai encontrando a sua distância e o seu ritmo
próprio, por largar determinantes inadequadas. Pressupõe-se uma
falsificabilidade de determinados comportamentos e decisões que
vão levando à emergência de comportamentos mais próprios e
adequados, sem a certeza absoluta do seu carácter adequado nas
situações futuras, mas com a segurança da iniciação ao
raciocínio hipotético-dedutivo.
Mas isto requer uma certa permanência
mental, mais ou menos formalizante, ou seja, um pensamento
formal, e, como vimos, na infância é relevante a importância
do presente concreto para a automanifestação (ver 3.3).
Só aos onze ou doze anos é que se passa de
um pensamento concreto a um pensamento formal. Mas, o pensamento
concreto refere-se à "representação de acções
possíveis" e o pensamento formal à "representação
de uma representação de acções possíveis" por meio de
palavras ou símbolos (CABRAL, 1990, p. 174).
O desenvolvimento do raciocínio
estratégico vai acontecendo à medida que a criança vai
interiorizando as acções possíveis na relação eu-outro. Por
isso, consciencializa a "guarda" com que entra no jogo.
Trata-se do pensamento concreto acompanhado da reversibilidade,
que se torna possível a partir dos sete anos.
A partir dos 3 anos a criança começa a
orientar a sua atenção para o objecto, distinguindo-o do
sujeito "eu". Mas esta auto-consciência é acompanhada
de um isolamento em relação às outras crianças. São as
colisões e os conflitos que vai tendo com as outras crianças
que a levam a tomar consciência da personalidade do
"outro".
Como vimos, observações têm permitido
perceber que é a partir dos 4, 5 anos que se começam a gerar,
esporadicamente, grupos duais, permanecendo o egocentrismo
manifestado na falta de preocupação em ganhar, pois ganhar
implica a perfeita consciência do "outro". Só a
intervenção do adulto na aula é que consegue manter a ordem do
grupo.
A gestão da iniciação ao Karaté pelos 5
anos, pode ter a tendência para o refúgio no reducionismo
ontológico sem sentido concreto, ou seja, para uma iniciação
baseada em exercícios onde a presença do "outro" não
seja indispensável: Kihon[16]
e Kata[17]. Estas
práticas só têm significado com determinados "estados de
espírito" que implicam descentração do "eu"
rumo ao "outro". Não ter isto em conta não é
preparar as crianças para um jogo criativo, liberto, autónomo.
Só com muito cuidado se devem utilizar os Desportos de Combate
com crianças de cinco anos.
Além disso, só aos 7, 8 anos é que se faz
a aquisição matura dos movimentos fundamentais, tornando-se
mais importante, a partir daqui, a consolidação do discurso
motor próprio pela modelação sócio-institucionalizada.
Assim, se tivessemos que encontrar uma idade
"mais adequada" para se iniciar a prática dos
Desportos de Combate, optaríamos pelos 6, 7 anos. Mas mais
importante do que isso é a preocupação evidente pela
formação do gestor da prática. Ele deve ser um especialista em
crianças. Disto não temos dúvidas.
Para terminar, vamos fazer uma pequena
abordagem ao problema da saudação, já que é encarada matéria
integrante do ensino de Karaté.
Naturalmente que existe toda uma atmosfera
que acompanha culturalmente as artes marciais e os Desportos de
Combate, não apenas nos locais de prática, mas pelo simples
facto de a criança, e todos os que com ela contactam, tomarem
consciência de que "faz Karaté". É a imagem, a
concepção que culturalmente foi e vai sendo inculcada nas
pessoas adultas, e nas próprias crianças.
Como já evidenciámos, LOUKA realça o
facto de que existe uma sensibilidade generalizada para com as
noções fundamentais de respeito, de rigor, de mestria e de
coragem (1990, p 15), e, quanto a ele, o elemento ético
é fundamental ao Karaté.
Sendo as actividades marciais aquelas onde
menos se sublima a morte, principalmente nas suas formas
mais abruptas e disruptivas, e sendo essa morte profundamente
ligada ao acaso, ao destino, sempre se ligaram, culturalmente, a
uma realidade onde se procura exercitar "um poder
transcendente que o domine" (SANTOS, 1989, p. 141).
Naturalmente que, ligada à "desordem" inerente ao
acaso, existe a tentativa de impôr uma determinada ordem.
A importância tradicional dada à ética,
está, a nosso entender, profundamente ligada a este problema. As
normas, os valores e os símbolos que se devem promover na, e
pela prática do Karaté, podem ou não afastar-se daquela visão
mais tradicional.
A saudação, comum no Karaté, simboliza,
em certa medida, o "homem arcaico" de Mircea ELIADE
(1985, pp. 160-174), na sua procura de liberdade face ao
desencanto histórico do "homem moderno". No entanto, e
em coerência com a nova antropologia, não consideramos
ilusória a liberdade de fazer história, pois, ao contrário do
que ELIADE afirmou (ibidem, p. 169), há um sentido de
ultrapassagem da condição de Homem limitado. Reformulam-se os
limites esporádicos, e criam-se limites mais vastos: é a isto
que chamamos a transcendência da actualidade, rumo à
virtualidade.
O espaço de saudação tem o sentido, de
situar, de continuar o "homem arcaico", mas não de uma
forma estática. A seguir, a prática do jogo, como situação
mais ou menos mimética, mais ou menos agonística, permitirá
uma expressão mais ou menos inovadora, mais ou menos criativa.
Sem dúvida que consideramos que a actualização, a
incorporação do presente-passado, é condição essencial à
transcendência.
Na sociedade infantil dos pré-pubertários
existe, naturalmente, todo um cerimonial preparatório do jogo,
contendo "rituais, fórmulas sacramentais, contagens
cabalísticas infantis, que, como e com as regras, se transmitem
por tradição oral dos mais velhos aos mais novos, e que põe em
destaque uma das características das sociedades infantis: o seu
formalismo" (REYMOND-RIVIER, trad: 1983, p. 108).
A criança gosta de ordem, precisa de se
actualizar para que possa aproveitar os momentos de
trancendência que lhes surgem na aula de Karaté. A saudação
é, pois, um espaço de ordem onde ela participa com gosto.
Mas a saudação inicial e final, na aula,
têm um significado, tal como o tem a saudação ao parceiro de
jogo, ao adversário. Quanto a nós, o que as une é o sentimento
de respeito, e o que as diferencia é o sujeito visado. No
início e no fim da aula são, primeiro, os mestres antigos e
mais velhos, é, depois, o mestre actual e, por fim, são os
próprios companheiros de aula; no combate, é o companheiro de
treino, ou o adversário. O seu significado, o seu valor, deve
ser transmitido às crianças.
Se inicialmente esse respeito pelos
"outros" visava a descentração com objectivos
militares[18], hoje a
descentração tem objectivos predominantemente éticos (valores
de respeito pela vida e pelos outros) e psicológicos (treino
desenvolvimentista do sair de si mesmo rumo ao outro - outra
atenção; concentração, outro domínio de afectividade, etc.).
A imagem que têm do adulto é, normalmente,
lisongeadora. Convém que vão desenvolvendo a imagem do
"outro" com o mesmo sentimento de respeito, pois é na
infância que se desenvolve essa imagem.
Como é claro, o sentido da socialização
não é dado apenas por um espaço determinado na aula. Realcemos
que deve existir uma profunda coerência entre todas as atitudes
tomadas na gestão dessa aula. A saudação será uma das gotas
desse oceano.
O Jogo é uma actividade importante no
desenvolvimento infantil, e se os jogos de luta e de combate
devem ser utilizados nessas idades, respeitando criteriosamente o
seu desenvolvimento, como verdadeiros auxiliares seus
potenciadores, há que evidenciar a vertente lúdica na
utilização dos Desportos de Combate como vínculos de
educação.
O Karaté infantil deve ser encarado numa
perspectiva instrumental de desenvolvimento global da criança.
Para isso tem-se em conta o seu desenvolvimento e procura-se
promovê-lo, incidindo em pontos importantes.
Antes de tudo, devemos olhar para os
protagonistas, e, como educadores, planear actividades que possam
ajudar a desenvolvê-los de forma harmoniosa e respeitadora. O
Karaté infantil, sem dúvida, deve ser encarado como uma
actividade lúdica por excelência, ou seja, como um verdadeiro jogo
cujo projecto é o prazer lúdico dado pela vitória entendida
como actividade bem sucedida na repetição.
Devido o seu carácter de jogo dual, pode
ser motor de promoção de desenvolvimento social, principalmente
ao nível da terceira infância. E este carácter particular é
potenciado por toda uma espectativa social em relação aos
valores éticos que se devem fomentar com esta actividade, donde
se realçou o valor de respeito pelo "outro".
Assim, a descentração egocêntrica rumo ao
"outro", rumo ao mundo, é potenciada com um
significado ético preciso. A reversibilidade, a adquirir na
terceira infância (dos sete aos onze ou doze anos), é
notoriamente estimulada no jogo dual, dadas as suas
características de actividade aberta.
A preocupação conclusiva diz respeito à
necessidade de formação dos intervenientes na gestão do
Karaté infantil que, para ser um especialista na actividade,
deve, sem qualquer dúvida, dominar a problemática da infância
nas suas variadas vertentes, tendo, neste trabalho, tratado
exclusivamente da vertente referente ao desenvolvimento lúdico.
No âmbito do Desenvolvimento Motor (estudo das transformações
a longo prazo), outras vertentes se abrem para complementar esta:
variáveis biossociais associadas ao estudo dos mecanismos de
regulação motora (Controlo Motor) e ao estudo dos processos de
aperfeiçoamento da resposta em função da prática num quadro
temporal limitado pela noção de tarefa (Aprendizagem Motora).
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[1]Também
referidos como "artes marciais", "artes de
combate", "actividades fisico-desportivas de
combate". Sobre este assunto, ver: do autor, "O
Desenvolvimento do Karate Nacional (A Tensão entre "Arte
Marcial" e "Desporto de Combate")", Bushido
- Artes Marciais e Desportos de Combate, Lisboa, nº 22,
Outubro de 1990, p. 22; de LIMA, António, "Desportos de
Combate - Contributo Terminológico e Sistematização das
Actividades", Horizonte, Lisboa, vol.VII, nº 40,
Nov-Dez, 1990, pp. 119-125.
[2]Mais
concretamente, desde 1987, com a publicação de "O
Significado Actual do Karaté", Horizonte, Lisboa, vol.IV,
nº 22, Nov-Dez, 1987, Dossier: pp.I-VII.
[3]Três
áreas que têm sido objecto de investigação na FMH,
demonstrando a sua clara inter-independência (permitam-me a
expressão), são: análise da tarefa, conhecimento de
resultados e variabilidade das condições de prática.
Consideramos a primeira área aquela que mais profundamente situa
as abordagens metodológicas práticas
("sistemáticas", "propedêuticas",
"desportos", etc.), dimensão curricular onde nos
inserimos profissionalmente, pelo que por ela decorrerão os
nossos esforços futuros de estudo.
[4]Como
diria Agostinho da Silva, o Homem não nasceu para trabalhar mas
sim para criar.
[5]Uma
das quatro categorias definidas por Roger CAILLOIS em 1958 com Les
Jeux et les Hommes, Paris, Gallimard, pp. 42-43. As outras
são os Jogos de Azar, que se opõe à categoria anterior, os
Jogos de Simulacro, onde se distancia da realidade, e os Jogos de
Vertigem onde se pretende quebrar a estabilidade da percepção
normal.
[6]Aqui,
com António CABRAL (1990, pp. 30-33), discordamos da
interpretação lata do carácter autotélico e gratuito do jogo,
a favor da não gratuitidade (a vitória ou derrota) que leva ao
prazer pela vitória como o fim do jogo. O simulacro e a
vertigem, que podem acompanhar a actividade e, como fonte de
prazer, levar à sua repetição, são comparáveis a todos os
estados interiores que acompanham a "actividade bem sucedida
na repetição que [...] gera o prazer lúdico". É por isto
que se entende "vitória".
[7]Mais
à frente abordaremos o problema do comportamento humano face à
inoperância da previsibilidade do resultado mútuo das acções
de jogo (a "desordem"), o que leva a procurar a
imposição de determinados estados de ordem.
[8]Os
campeonatos promovidos pela JKA em 1957, meses após a morte de
G. Funakoshi, são uma organização particular do Shotokan. Ao
contrário, a organização JKF surge como organização
inter-escolas: Shotokan, Goju-Ryu, Shito-Ryu e Wado-Ryu.
[9]Jogo
de combate de Karaté, com diversos níveis de complexidade. A
oposição é o factor identificador (ao contrário do kihon
e do kata), podendo ser prescrito com vários graus de
liberdade: desde o definir quem ataca e quem defende, o como e o
quando o fazem, até situações totalmente livres, e assim, mais
próximas da realidade.
[10]Federação Mundial de Karaté eis World Union of
Karatedo Organizations - reconhecida pelo Comité Olímpico
Internacional desde 1985.
[11]Veja-se a investigação efectuada sobre o problema
das relações espacias entre o executante e o alvo a atingir,
quando a situação é de controlo e quando é de impacto:
FIGUEIREDO, Abel (1989), Biomecânica das Técnicas
Desportivas: Comparação de Parâmetros Cinemáticos na
Execução de uma Técnica de Karaté (OI-ZUKI), Com e Sem
Controlo do Impacto, Monografia Final para a obtenção do
Grau de Licenciado, Orientação do Prof. Doutor João
Abrantes, FMH-UTL, 20 de Julho de 1989, (não publicado).
[12]Estes dados respeitam ao caso Francês que, na
falta de dados nacionais, nos vão servir o nosso propósito.
[13]O Dojo. Termo japonês que significa o local
ou a casa (jo) onde se procura e se pratica a via, o
caminho (do).
[14]Está inerente uma escala de valores que faz apelo
ao respeito total pelo outro.
[15]É este o sentido do ippon (ponto) na
pontuação de Karaté: pressupõe que no caso de o movimento
não ser controlado (princípio do sun dome) ele levaria
à morte do adversário; hoje, com a modificação das regras
existe a tendência para perder este sentido. Ver, sobre o
assunto: "O 'Ippon' no Karate (Análise Geral da Pontuação
na Prova de Kumité)", Bushido - Artes Marciais e
Desportos de Combate, Lisboa, nºs 13, 16, 17 e 18, Jan. 90,
Abr. 90, Maio 90 e Jun. 90.
[16]Kihon, no Karaté, corresponde a um
encadeamento, mais ou menos simples, de uma ou várias acções
técnico-tácticas de combate, executadas sem oposição (sem
adversário), permitindo a repetição específica com o
objectivo do aperfeiçoamento técnico-táctico.
[17]Kata, também situação sem
oposição, o que permite o treino solitário, é um conjunto de
acções técnico-tácticas estandartizadas, ou melhor:
formalmente codificadas e encadeadas. Identificado com um nome (Saifa,
Seienchin, Unsu, Passai, etc.), são
instrumentos culturais transmitidos no seio das escolas
("estilos") de Karaté. Além das exigências
perceptivo-motoras, estão-lhe inerentes "estados de
espírito orientados para o do", para a via ou
caminho (TOKITSU, 1979, p. 89). Actualmente são, também,
objecto de competição institucionalizada específica: prova de
Katas, individual ou por equipas (três elementos), por sexos e
escalões ectários).
[18]Um guerreiro
descentrado, ou seja, um guerreiro que age pelos outros (Pátria,
Família, Compenheiro) ultrapassa os seus limites pessoais
virtualizando-se na imortalidade.
Page: 12
[AF1]REYMOND-RYVIER,
trad: 1983, p. 81
Page: 14
[AF2]MAIGRE e
DESTROOPER, 1975, em M. Sérgio, 1987, p. 86
Page: 15
[AF3]FREIRE,
1989, p. 162)
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