O ÂMAGO DO KARATÉ

Abel A. A. Figueiredo - 1994

 

INTRODUÇÃO

De um trabalho anterior ficou-nos evidenciado o facto de que o fundamento da prática de Karaté no século XIX e antes da II Grande Guerra do séc. XX era, sem dúvida nenhuma, a prática dos Kata, cujos significados estavam e estão preponderantemente assentes na resolução de situações de combate. Após este período, sob diversas influências, vão surgindo outras dimensões de treino no Karaté, com destaque especial para o Kumité.

Em entrevista dada a Ian MacLaren, Masatoshi Nakayama (1913-1987) evidenciou que "os fundamentos do Karaté do Mestre Funakoshi assentam primeiro no desenvolvimento de fortes bases pela prática do Kihon e Kata, e depois na testagem daquelas técnicas em Kumité [...]. (Nakayama, in Mclaren, 1988, p.28).

TOKITSU (1994, p. 118), no entanto, refere-nos as reticências claras que G. Funakoshi deixava à prática dos exercícios de combate livre que começaram a ser desenvolvidas no seu Shotokan, acabando mesmo Ôtsuka por criar o Wado-Ryu. Por outro lado, refere-nos ainda o secretismo que os exercícios de combate tinham nas outras escolas de Okinawa.

Actualmente há dois grupos de provas competitivas de Karaté promovidas pela Federação Mundial de Karaté onde está filiada a FNK-P: Kumité que surgiu com os primeiros campeonatos mundiais de Karaté em Tokio de 10 a 13 de Outubro de 1970 com a fundação da WUKO (Worl Union of Karatedo Organizations) e Kata que surgiu no decurso dos 4ºs campeonatos mundiais de Karaté promovidos pela WUKO em 3 e 4 de Dezembro de 1977, curiosamente também em Tokio.

Assim, com a vertente competitiva institucionalizada o que antes era visto como meios de treino tornaram-se fins em si mesmo. Este facto tem levado alguns a reticenciar que as provas competitivas sejam o âmago do Karaté.

Neste trabalho vamos procurar perceber qual tem sido o fio norteador que ao longo da história do Karaté tem levado os Karatecas a fazerem determinadas operações para aperfeiçoarem o seu Karaté. Assim, vamos procurar evidenciar o que tem sido o âmago do Karaté nos últimos tempos de forma a podermos nortear também o nosso Karaté actual de forma mais consciente.

 

A CIRCUNSTÂNCIA COMPETITIVA KUMITÉ

Normalmente, no Karaté, as "[...] àreas básicas do treino [sistematizadas por Funakochi Gichin (considerado um dos fundadores do Karaté moderno) são três] - Kihon, que é o treino nos fundamentos; Kata, que é o treino em exercícios formais; e Kumité, que é o jogo de combate (sparring)". (Nakayama, in MacLaren, 1988, p.27 - sublinhados nossos). Há que considerar, quanto a nós, uma outra área tradicionalmente importante, principalmente nas escolas de Okinawa (ilha ao sul do Japão, considerada como o "berço do Karaté"), que está intimamente relacionada com a aplicação dos exercícios formais num treino com parceiro; referimo-nos aos Bunkai.

As razões significativas que lançam a coerência para o treino de Karaté naturalmente que terão a ver com o projecto norteador do processo de treino.

Nos exames de passagem de graduação hoje muito comuns (trata-se na verdade de um outro tipo de competição) são observados os Karatecas em execução de Kihon, Kata, Bunkai e Kumité.

Na circunstância competitiva institucionalizada pegou-se numa das dimensões básicas do treino de Karaté (Kumité) e transformou-se num jogo devidamente regulamentado, tal como posteriormente se fez com outra: Kata.

João ROQUETE (in: ALMADA, 1992b), evidencia o problema da segurança em paralelo com a evolução da regulamentação desportiva e do processo de ensino/treino como dimensões prospectivas fundamentais para a gestão dos Desportos de Combate.

Já ficou evidente que as modificações que Ankô Itosu trouxe para determinados Kata, no sentido de tornar mais segura a prática do Karaté pelos alunos das escolas oficiais de Okinawa, acabou por ser criticado, ao ponto de alguns autores menosprezarem o seu Karaté. Entre eles Kahô Sai (1849-?), mestre de Okinawa (in: TOKITSU, 1994, p. 55):

O karaté de mestre Sôkon Matsumura é autêntico. Mas o de Itosu contém erros profundos. Depois que Okinawa foi integrada numa província do Japão, o karaté verdadeiro parece ter desaparecido. Os adeptos do Shuri começaram a praticar um Karaté errado. Não há mesmo nada a discutir sobre o que é o Karaté.

Naturalmente que a tentativa de resolução dos problemas de segurança no combate competitivo institucionalizado acarreta um conjunto de problemas onde destacamos duas ordens em oposição constante:

- O grau de descaracterização do essencial do combate inerme.

- A eficácia das normas de segurança.

A resolução dos problemas de segurança na circunstância competitiva de Karaté foram, logo desde o início das competições, assumidos como uma questão de prevenção do contacto e não propriamente da redução das suas consequências. A regulamentação da prova de Kumité evidencia o princípio do sundome, ou seja, o ataque tem que parar antes de atingir o adversário, o que emerge da regra que explicita a necessidade de respeitar a integridade física do oponente de jogo.

As protecções que eventualmente se utilizam têm o sentido preventivo e não redutivo das consequências dos impactos que, a existirem são penalizados. Noutros desportos de combate em que se objectiva a transmissão de impactos o sentido das protecções é explicitamente de reduzir as consequências desses impactos (Taekwondo, Kickboxe, Pugilismo, Etc.).

Uma das consequências facilmente visíveis é a de que na competição institucionalizada de combate em Karaté o resultado não se prende com a real/actual consequência da aplicação de uma técnica de impacto em determinadas zonas corporais do adversário; prende-se com a sua virtual consequência. Isto significa claramente que se encontra num outro domínio de real que não o combate "marcial". Os árbitros pontuam o timing (tempo de entrada), a forma (precisão, velocidade, coordenação, equilíbrio), a atitude (estado de espírito, atenção, concentração) com que o karateca resolve as situações de jogo de combate que culminam principalmente nos momentos de ataque, ou seja, nos momentos em que um dos sistemas actualiza expressamente a sua superioridade em relação ao outro.

É de evidenciar também que com estas regras que procuram elogiar o respeito pela integridade física do adversário avalia-se principalmente a potencialidade dos seus ataques. Ou seja: este ataque, se não fosse controlado causaria um K.O. no adversário (Ipon - dois pontos) ou, pelo menos, deixá-lo-ia momentaneamente em inferioridade neuro-fisiológica (Wasari - um ponto). Trata-se portanto de procurar o significado do comportamento do competidor sempre em comparação com uma situação real de luta.

Sendo este um dos princípios fundamentais da segurança dos praticantes na prática competitiva institucionalizada da prova de Kumité, o que se tem passado na realidade competitiva nacional e mesmo internacional é que o contacto, ou seja, a falta de respeito pelo princípio de sundome, não tem sido suficientemente penalizada por alguns árbitros, simplesmente por falta de consciência perfeita do que encerra a prova de Kumité. Daqui pode decorrer uma prática errada por parte dos competidores e uma má imagem da modalidade.

Para além do princípio de sundome, estão expressamente referidas zonas corporais pontuáveis e algumas formas proibidas de ataque. Actualmente não se diz regulamentarmente que técnicas é que são permitidas, embora, curiosamente, essa passe a ser uma das interpretações fundamentais de alguns Karatecas e Árbitros, o que reduz as potencialidades criativas de resolução das situações de combate.

Por fim, a situação de luta institucionalizada, também por razões de segurança, está ainda limitada à transmissão de impactos exclusivamente com as mãos e com os pés, podendo-se eventualmente desequilibrar e projectar o adversário sem o agarrar desde que essa acção técnico-táctica seja seguida de um ataque de mãos ou pés.

Podemos concluir que a institucionalização da prova competitiva de Kumité permite a operacionalização de um treino em que o fim é a prova em si mesmo, ou seja, uma situação com outras características técnicas, tácticas, físicas, psicológicas e sociais que não as que estão inerentes ao combate inerme real ("marcial").

 

A CIRCUNSTÂNCIA KATA

A preparação para o combate no Karaté sempre passou pelo treino dos Kata. Curiosamente o carácter sistematizador mais evidente no desenvolvimento inicial do Karaté moderno é, sem dúvida, o referente aos kata. C. Miyagi é quem tenta atingir um domínio mais classificativo lançando três categorias:

Kihon-gata - que designa o Kata de base (Sanshin).

Kaishu-gata - que quer dizer "kata de mão aberta" (Gekisai I e II, Saifa, Seienshin, Shisôchin, Sansêru, Sêpai, Kururunfa, Sêsan e Sûpârinpê).

Heishu-gata - que quer dizer "kata de mão fechada" (Tensho).

Mais uma vez, não é o sentido literal da "mão fechada" ou "aberta" que é o essencial desta classificação. O Kata Tensho é em grande parte feito com a mão aberta e, embora sem uniformidade de critério entre alguns mestres actuais de Goju-ryu, é classificado como Heishu-gata (Eiichi Miyasato 10º dan e aluno directo de C. Miyagi, 1978, in: TOKITSU, 1994, p. 90).

Embora seja constactável a confusão interpretativa dos dois conceitos, por falta de uma definição mais rigorosa por parte de C. Miyagi, Tadahiko Ôtsuka lança-nos uma interpretação que julgamos muito interessante. Enquanto a palavra kai tem o sentido de "abrir", ou seja, de "iniciar numa arte", a palavra hei tem o sentido de "terminar" (ÔTSUKA, T., 1977, in: TOKITSU, 1994, p. 91). Esta interpretação abre-nos uma perspectiva interessante: os Kaishu-gata são iniciadores e o Heishu-gata é finalizador à escola; cada kata é iniciado no sentido de Kaishu-gata e tende, à medida da interpretação pessoal, a tornar-se subjectivamente Heishu-gata; uma sessão deve iniciar-se pelos Kaishu-gata e terminar com o Heishu-gata; etc.

TOKITSU considera inovadora a ideia que Chojun Miyagi teve em classificar os kata em duas modalidades: "por um lado modelo e referência de aprendizagem; elaboração e modelo técnico personalizado por outro lado" (1994, p. 91). A seguir critica o facto de que no século XX se ter instaurado uma atitude mais rígida nas formas de ensino dos Kata ao ponto de se perderem bastantes significados dos seus movimentos. Esse autor evidencia o facto de que K. Higaonna e C. Miyagi sempre se preocuparam com a significação das situações técnicas dos kata através da lógica do combate, o que por vezes não se passou noutras escolas.

Se para o Naha-te e depois Goju-ryu a preocupação sempre inerente foi a de manter a significação explícita com o combate, já para o Shuri-te essa função explicitamente significadora teve algumas dissidências, principalmente iniciadas com as reformas de A. Itosu na massificação do ensino do Karaté.

No entanto, é o próprio Itosu que, em 1908, numa das suas dez instruções que refere (in: TOKITSU, 1994, p. 53):

A propósito dos kata de karaté, é necessário treinar-se repetindo-os o mais possível. Mas é absolutamente essencial conhecer o significado e a aplicação de cada técnica.
É necessário saber que que existem numerosos ensinamentos orais complementares aos kata para as técnicas de ataque, de defesa, de desprendimento e de agarrar.

Assim, o Kata não encerra em si mesmo as virtualidades de um bom exercício para o Karaté. Depende da sua orientação, ou seja, depende da gestão da sua aplicação no treino de karaté, o que elogia claramente o papel do mestre ou treinador.

A execução de um Kata como fim em si mesmo torna-se naturalmente uma tarefa diferente da que está subjacente ao seu papel fundamentador da prática de Karaté com fim "marcial".

 

A CIRCUNSTÂNCIA DE COMBATE MARCIAL

Se por razões de segurança a prova de Kumité está limitada a algumas técnicas de mãos de pés, podendo-se eventualmente desequilibrar e projectar o adversário sem o agarrar desde que essa acção técnico-táctica seja seguida de um ataque de mãos ou pés, curiosamente, num dos livros essenciais ao desenvolvimento do Karaté em Okinawa-Japão, o BUBISHI, nas "seis formas fundamentais da mão", nenhuma é a de punho fechado e, das "quarenta e oito técnicas da arte de combate de mão vazia" lá descritas, apenas duas, a 10ª e a 36ª são de punho fechado sem utilização pontual das falanges ou seja, cerca de 4%.

As técnicas marciais chinesas descritas no BUBISHI incluiam bastantes ataques a pontos vitais com a palma das mãos, dedos, cotovelos e joelhos, algumas projecções, poucos estrangulamentos e, mais dificilmente identificáveis, imobilizações e chaves às articulações.

Veja-se como na descrição dos princípios taxonómicos essenciais da arte marcial de suporte ao Karaté fica evidente, além do sentido analógico, o seu carácter eclético:

Podemos classificar a técnica da arte da grou em três categorias; a grou que voa, a grou que combate e a grou que joga. A grou que voa empurra, projecta, derruba e perturba. A grou que combate sacode, larga e rompe. A grou que joga protege-se, cola-se, mexe, mergulha, vira-se, cai, incha-se, e impede o outro de se mover. Podemos utilizar estas técnicas para diminuir a energia do adversário, para o destruir ou para defesa pessoal. Para tal é importante não dividir o seu espírito da sua vontade mas de os unificar. Graças à integração do espírito e da vontade a energia funde-se com a força e, graças à integração da inspiração e da expiração, as forças interna e externa jorram com naturalidade. Se não dominarmos esta regra, não poderemos adquirir uma força dinâmica e a força tornar-se-á tão rígida como se estivéssemos inertes. As forças distanciar-se-ão entre o alto e o baixo do corpo; isto não é conforme ao princípio da eficácia e não poderemos chamar aquilo "arte de combate". (TOKITSU, 1994, p. 165)

Num sentido mais particularizador e para completar a nossa análise, o BUBISHI apresenta situações diversas não restritivas à aplicação de impactos em pontos vitais. Além da utilização de todas as partes do corpo, salienta, em alguns estudos de casos, situações de pega, projecção, imobilização, estrangulamento e chaves.

Assim, temos claramente identificado o sentido inicial do treino de Karaté através dos Kata: preparação para o combate real.

A situação de Kumité convencional desenvolvida inicialmente sob a influência determinante de H. Ôhtsuka, com base nas suas experiências em jujustu e em sabre japonês, surge como espaço propício para uma actualização mais evidente das situações implícitas nos Kata. Para Funakoshi estes movimentos modificavam o essencial do Karaté.

Na verdade, quanto a nós, a situação significadora de toda a prática de Karaté é o combate inerme contra um ou vários adversários. Todos os movimentos sistematizadores da sua prática, reducionistas por natureza própria, lançaram o risco de se confundir a preparação para essa situação virtual com o âmago do Karaté, ao ponto de se confundir o Karaté com um número limitado de técnicas executadas em Kihon, Kata, Bunkai ou Kumité.

Quem confunde assim o Karaté, lê o BUBISHI de forma antológica.

Mas o BUBISHI pode e deve ser lido não num sentido antológico (colecção de "técnicas" ou mesmo de situações de combate) mas num outro sentido. Na apresentação de determinadas situações, não são propriamente as particularidades onde nos deveremos centrar, mas nos princípios generalizáveis dali decorrentes. Por exemplo:

Se o adversário se aproxima muito de ti, utiliza as mãos.
Logo que o adversário tente afastar-se de ti, lança-lhe um pontapé.

Não é propriamente a técnica de mão ou de pé que aqui é de evidenciar mas antes a dimensão maai (distância). Não é apenas o sentido literal que aqui interessa; esse poderá lá estar, mas é superado por um sentido mais generalizável.

Assim, o valor das referidas 48 técnicas ou da descrição situacional não se reduz exclusivamente à sua forma mas essencialmente aos princípios que se mantêm em coerência com o restante texto.

 

A CIRCUNSTÂNCIA PARA A VIDA

Para os mestres antigos a referência à arte marcial que em Okinawa deu origem ao Karaté na última transição de século sempre foi o Homem em si mesmo e circunstancialmente o Homem em oposição a adversários. Vejamos os "oito preceitos da arte de combate" (kenpô taiyô hakku) que se encontram no BUBISHI (TOKITSU, 1994, p. 87):

1 - O Espírito do Homem é análogo ao Universo.
2 - O sangue circula como se movem a lua e o sol.
3 - A inspiração e expiração em força (gô) e flexibilidade (jû) são essenciais.
4 - O corpo segue o tempo e adapta-se à mudança.
5 - Desde que os membros encontrem o vazio, deslocam-se com uma técnica precisa.
6 - O centro de gravidade avança, recua e os adversários afastam-se e aproximam-se.
7 - Os olhos devem ver nos quatro lados.
8 - Os ouvidos devem escutar nas oito direcções.

Complementarmente a estes preceitos, no BUBISHI vêm colocadas algumas afirmações de Sun Tzu retiradas do seu livro (A Arte da Guerra):

Se te conheceres a ti mesmo e conheceres o teu adversário ganharás cem combates em cem.
Se te conheceres a ti mesmo, mas não conheceres o teu adversário, ganharás uma vez e perderás uma vez.
Se não te conheceres a ti mesmo nem ao teu adversário, perderás cem combates em cem.
Dever-se-á refletir muito sobre isto.
É necessário captar de uma forma directa o estado das coisas e, logo de seguida, adaptar-se à mudança. Dominar o adversário sem combater é o último estado da estratégia que leva ao bem.
É indispensável ter estas ideias e estratégias da arte de combate no nosso espírito.

É de evidenciar a posição do Homem, com os seus sentidos atentos ao interior e exterior de si mesmo, em relação ao adversário. A intencionalidade operante na "arte de combate" é a resolução da situação de oposição EU-OUTRO, podendo eventualmente este "outro" representar mais do que um adversário.

SITUAÇÃO DE COMBATE

O autoconhecimento emerge como processo tão fundamental como o heteroconhecimento. Sendo processos, a questão que se coloca é: como se desenvolvem da forma mais eficaz?

Matsumura deixa a um dos seus alunos (Ryôsei Kuwaé) um dos documentos mais antigos da história de Okinawa - tratam-se de algumas instruções de treino (TOKITSU, 1994, pp. 44-45):

É indispensável compreender o verdadeiro significado do treino em artes marciais. A seguir caracterizo essa atitude que deverás estudar com cuidado.
Desde logo as vias de estudo e de arte marcial são baseadas num mesmo princípio e cada via compõe-se de três espécies.
[...]
As três espécies na via da arte marcial são a arte marcial do intelectual, a arte marcial do pretencioso e a arte marcial do budo.
Na arte marcial do intelectual, pensamos em diferentes formas de treino e mudamos sem as aprofundar. Conhecemos numerosas técnicas mas a prática é como uma dança sendo incapazes de as aplicar em combate. Não se é melhor que uma mulher.
Na arte marcial do pretencioso, agitamo-nos bastante sem nos treinarmos realmente, portanto, falamos muitas vezes das nossas façanhas gloriosas. Causamos tumultos, desordens e ofendemos os outros. Segundo as circunstancias arriscamo-nos à auto-destruição ou à desonra da nossa família.
Na arte marcial do budo o êxito assenta numa elaboração permanente, permanecemos calmos mesmo quando os outros estão agitados e ganhamos dominando o espírito do nosso adversário. Com o amadurecimento da nossa arte chegamos a manifestar capacidades superiores e subtis, imperturbáveis seja em que situação for, nunca saindo de nós mesmos. E, por lealdade e fidelidade ao nosso senhor e aos nossos pais, tornamo-nos um tigre feroz, uma águia digna; donos da rapidez de visão de um pássaro, poderemos vencer qualquer inimigo.
O objectivo da arte marcial consiste em dominar a violência, a tornar inúteis os soldados, a proteger o povo, a desenvolver as qualidades da pessoa, a assegurar tranquilidade, a criar harmonia entre os grupos e, de seguida, a aumentar os bens da sociedade. São as sete virtudes da arte marcial que o Santo Mestre (Confúcio) elogia. [...] São inúteis as artes marciais do intelectual e do pretencioso. Gostaria que prosseguisses no sentido da arte marcial do budo e fosses capaz de reagir convenientemente segundo as situações em mutação e de as dominar.
Escrevi isto sem quaisquer reticências já que é com esse espírito que deverás continuar a aprofundar o teu treino.

Um dos primeiros sentidos para o desenvolvimento é, acima de tudo, a evidência do seu enquadramento global. Nos objectivos apresentados, apesar de alguns iniciarem uma certa especificidade (persistência e continuidade no treino, coerência com a situação de combate, "rapidez de visão", etc.) o enquadramento ético é notoriamente evidenciado.

Hoje, a saudação ao adversário, continua a ser o espaço ritualizador da ética essencial ao combate ritualizado (Kumité), assim como à execução dos exercícios de treino com parceiro (Bunkai) e sem parceiro (Kihon e Kata). É um espaço de ordem ética que marca o início e o fim de um espaço que culmina com a morte simbolizada no ipon, na vitória ou derrota (Sho-Bu).

Por outro lado, não podemos deixar de evidenciar o elogio de uma concepção de técnica particularmente pertinente. É, sem qualquer dúvida, menosprezado o reducionismo antológico, ou seja, a redução do Karaté ("arte de combate") a um conjunto de "técnicas" cujo maior somatório dará maiores probabilidades de vencer; nega-se, sem qualquer dúvida o "mais treino" e elogia-se o melhor treino. Fica-nos evidente o enquadramento da forma no conteúdo significador: o combate.

Mesmo A. Itosu, criticado por ter feito algumas modificações a Katas antigos, no sentido de os tornar mais "seguros" aos estudantes escolares, quando em Outubro de 1908 escreveu 10 instruções comentadas para a prática do Karaté salienta: "[...] A propósito das técnicas, é necessário treinar-se distinguindo aquelas que têm por objectivo o endurecimento do corpo [treino físico?] das que têm um objectivo estratégico [treino táctico-estratégico] [...]" (TOKITSU, 1994, p. 53).

Também decorrente do conjunto das instruções dadas, Itosu preocupa-se com a dimensão ética. Paralelamente à dimensão técnica e táctico-estratégica já evidenciada, há, claramente, a preocupação com a dimensão física e psicológica. Se para aquela ele apresenta o treino no Makiwara como suporte fundamental, para esta evidencia a necessidade de treinar a atenção pensando sempre em inimigos reais, com a vontade de um guerreiro, para se adquirirem capacidades reais.

A circunstância lançada pelas regras competitivas institucionalmente estabelecidas e desenvolvidas pela hoje denominada Federação Mundial de Karaté (FMK) onde se encontra filiada a Federação Nacional de Karaté - Portugal (FNK-P), para a prova de Kumité (combate) são uma circunstância redutora que, como qualquer outra, qualifica a situação de combate numa outra ordem qualitativa. Assim, desde logo poderemos afirmar que caracterizar a prova competitiva de Kumité não é, sem dúvida, caracterizar globalmente o Karaté.

O Karaté é algo mais estruturador do que qualquer das suas dimensões de treino. Ou ainda, que qualquer das suas escolas (estilos).

Há um sentido globalizante, mesmo apesar de se prosseguir uma certa linha orientadora. Na nossa perspectiva, há uma visão eclética e não reducionista em relação à resolução do combate inerme.

As várias operações sistematizadoras do Karaté têm demostrado que o Homem é um sistema ilimitadamente limitado, ou seja, dentro de determinados limites que não são constantes ele consegue estruturar-se consoante os estímulos tratados.

Esta visão circular, sem lados definidos, é uma visão que representa a globalidade da sua natureza. Se temos necessidade de o evidenciar é porque há momentos em que deixamos de ver esse Homem como um círculo e passamos a vê-lo como um polígono cuja natureza dos seus ângulos e lados depende das nossas intenções evidenciadoras, ou seja, das nossas definições circunstanciais.

As razões deste espírito classificador, intencionalmente elogiador de determinados aspectos (ângulos e lados) de um fenómeno global, têm, necessariamente, a ver com os próprios limites que nos caracterizam. São esses limites que por um lado nos individualizam (EU ao lado da CIRCUNSTÂNCIA) e por outro que nos lançam na sua rotura (ADAPTAÇÃO).

A Motricidade Humana ("virtualidade para a acção") é o objecto de estudo de muitas ciências (sociologia, psicologia, fisiologia, biomecânica, etc., etc.) e de muitos domínios de actividade e investigação onde, pela nossa especialidade, destacamos o Desporto. Estes domínios de actividade decorrem de um viver particular de civilizações e sociedades que devenvolveram e desenvolvem determinadas formas de pensar, sentir e agir, ou seja, determinadas formas de cultura.

O Desporto moderno nasce na segunda vaga e, naturalmente, encerra o código característico da atitude industrial. A inter-relação entre todos os princípios é evidente, levando, em última análise, à perca completa do verdadeiro sentido da prática desportiva. Sincronizaram-se os ritmos das multidões em assentos de estádios maximizados e maximizadores das prestações dos especializados artistas (por sua vez estandartizadores de determinados comportamentos), concentraram-se e centralizaram-se as informações em determinados órgãos de poder, etc.

Os Desportos de Combate do extremo oriente ("artes marciais") também foram assimilando, uns em maior grau do que outros, alguns daqueles princípios. Sincronizaram-se os tempos de aprendizagem de vários indivíduos concentrando-os no mesmo dojo; centralizou-se mais a gestão e realização de todo o processo no modelo "mestre"; maximizou-se a produção fazendo crescer o lucro do trabalho pela diminuição da relação mestre/alunos; estandartizaram-se mais os comportamentos, pois passámos a ter mais indivíduos a seguir o mesmo processo; etc.

Mas na sua origem os Desportos de Combate encerravam valores numa relação íntima e global com o seu protagonista e hoje, em coerência com o Paradigma Emergente, privilegiam o conhecimento do 'eu' total integrado no grupo" (ALMADA, Fernando, 1992, p. 52).

Na gestão do Karaté na actualidade, não deveremos perder este fio norteador que, na verdade, tem sido o fio de prumo da maioria dos mestres verdadeiramente especialistas da sua arte e cultos no seu enquadramento fundamentador do desenvolvimento humano.

Assim, o âmago do Karaté é, sem qualquer dúvida, o desenvolvimento humano cujo sentido depende da orientação do projecto onde se baseia a prática do Karaté.

Mais uma vez fica evidente a antineutralidade do Karaté. Na verdade é a ideia de projecto que, sendo o fio mediador da prática orientada de Karaté, dá uma direcção e um sentido ao desenvolvimento individual e colectivo dos praticantes de Karaté em cada um dos Dojo's existentes em todo o mundo.

Se a escola (estilo) é importante, quem a veicula é mais importante do ponto de vista desenvolvimentista.

A história do Karaté demonstra-nos que foram os vários projectos individuais e colectivos que construiram o nosso Karaté. Também nós temos a responsabilidade de continuar a construção do Karaté do amanhã porque os caminhos desconhecidos traçam-se à medida que se vai caminhando.

 

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